Talvez
o principal argumento em favor da democracia é aquele que diz que ela substitui
"tiros por votos": a democracia seria o único arranjo que permite
trocas de poder, ou a manutenção do poder, sem derramamento de sangue. A democracia substitui o
processo de mudanças violentas — algo inconveniente e destrutivo — pelo
processo de mudanças pacíficas que expressam o desejo da maioria.
Alguns
democratas definem a democracia como sendo a vontade da maioria, ao passo que
outros tomaram o cuidado de enfatizar que as minorias são livres para tentar,
de tempos em tempos, se tornar a maioria decisiva. Porém, qualquer que
seja a definição dada para a democracia, o argumento de que a democracia é o
melhor sistema disponível porque permite trocas pacíficas de poder — ou a manutenção pacífica do poder — sem
derramamento de sangue é o dominante.
(Outro
argumento utilizado pelos defensores da democracia é o de que as decisões da
maioria estão sempre, ou quase sempre, moralmente corretas. No entanto, o apoio a esse ponto específico —
uma verdadeira profissão de fé — vem minguando nos últimos anos.)
O
problema é que, embora persuasivo, o argumento da "mudança pacífica" ou da "manutenção pacífica" foi
simplesmente aceito sem nenhuma análise mais profunda. Mais
especificamente, ninguém realmente investigou se a atual forma de democracia seria
realmente compatível com esse argumento da "mudança pacífica", e se os
resultados práticos estão de acordo com os resultados que a teoria diz que
ocorreriam.
Em
vez de procurarem respostas, as pessoas simplesmente assumiram que qualquer
tipo de democracia está automaticamente credenciada como o melhor método de se
conduzir "mudanças pacíficas" de governo.
Porém,
vamos investigar o argumento um pouco mais a fundo.
O
que ele realmente afirma é que, no longo prazo, a opinião da maioria é o que
vale sob qualquer forma de governo, e que, portanto, é melhor deixar que a
maioria esteja no comando pacificamente — que é o objetivo da democracia — em
vez de obrigar essa mesma maioria a tomar as ruas periodicamente, praticando
algum violento golpe de estado ou uma revolução.
Desta
forma, dizem os democratas, os votos substituem os tiros e a carnificina de uma
maneira muito engenhosa — afinal, uma eleição democrática gera os mesmos
resultados políticos que teriam sido obtidos caso a maioria
tivesse de testar sua força contra a minoria em um combate violento.
Eis,
portanto, o primeiro critério para o argumento da mudança pacífica ou da continuidade pacífica: o resultado
das urnas será o mesmo resultado que ocorreria caso houvesse combates físicos da
maioria contra a minoria, só que com a vantagem de não haver derramamento de
sangue.
É
importante perceber que esse critério está rigorosamente implícito no argumento
em prol da democracia. Porém, surge o
primeiro problema: se aceitarmos esse argumento, mas por acaso descobrirmos que
a democracia gera sistematicamente resultados que estão em contradição com esse
argumento de que "os votos substituem o confronto físico, mas geram o mesmo
resultado político final", então, como consequência lógica, também teremos de
rejeitar essa forma de democracia — ou, no mínimo, rejeitar esse argumento.
Como,
portanto, a democracia se sai quando testada contra esse critério?
Talvez
a forma mais fundamental de democracia seja aquele em que cada homem tem um
voto. Porém, se tentarmos justificar esse arranjo utilizando o argumento
da mudança pacífica vamos nos deparar com dificuldades fundamentais.
Em
primeiro lugar, a força física notoriamente não é algo igualmente
distribuído. Em um combate direto, as mulheres, os idosos e os doentes se
sairiam muito mal. Portanto, se utilizarmos o argumento de que os votos
substituem o combate físico e geram o mesmo resultado, não há qualquer
justificativa para dar o poder do voto a esses grupos fisicamente delicados.
E não apenas eles teriam de ser impedidos de votar, como também o mesmo
critério teria de ser aplicado a todos os cidadãos que não passassem em um
teste de aptidão para o combate. Por outro lado, obviamente não deveria
haver qualquer tipo de proibição ao voto dos analfabetos, uma vez que ser
alfabetizado não tem relação alguma com o potencial de combate de um
homem. Além de impedir o voto de todos aqueles não aptos para o combate,
teríamos — por uma mera questão de lógica — de dar votos plurais para todos
aqueles que possuem treinamento militar (tais como soldados e policiais), pois
é óbvio que um grupo de combatentes altamente treinados poderia facilmente
derrotar um grupo bem mais numeroso de amadores, mesmo que igualmente robusto.
Logo,
já identificamos a primeira falha lógica do argumento em prol da democracia.
Mas
há outras.
Além
de ignorar as desigualdades da força física e da aptidão para o combate, há
outro aspecto sob o qual as atuais democracias se mostram incapazes de cumprir
os requerimentos lógicos do argumento da mudança pacífica. Essa
incapacidade advém de outra desigualdade básica: a desigualdade de
interesses ou a desigualdade da intensidade da crença.
Suponha
que 60% da população de um país seja indiferente ou ligeiramente favorável ao
atual governo ou ao atual partido político que está no governo, ao passo que os
40% restantes são contra. Suponha também que esses 40% são realmente contra o atual governo e o
atual partido que está no poder, de maneira intensa e inflamada, pois são eles
que estão tendo de arcar com as benesses e com os privilégios que o governo
distribui para seu eleitorado cativo. Na
ausência de democracia, esses 40% estariam muito mais dispostos a entrar em
combates físicos.
Enquanto
isso, os outros 60% são formados por pessoas indiferentes, por pessoas desinformadas,
por pessoas que têm apenas um leve interesse no assunto e pelos privilegiados
pelo governo. Os três primeiros grupos certamente
jamais iriam às ruas guerrear, mas seu eventual voto em prol do governo tem o
mesmo peso de um voto contra o governo.
Logo,
em uma eleição democrática, o voto de uma pessoa apática, desinteressada e
desinformada tem o poder de anular totalmente o voto de um eleitor entusiasmado
e realmente a fim de alterar o atual estado das coisas. Por causa de sua falta de interesse, a maior
parte dos integrantes dessa maioria jamais se disporia a entrar em
combate.
Assim,
se aceitarmos a tese de que a democracia substitui tiros por votos e gera os mesmos resultados, então
temos de concordar que um processo democrático que dá a um homem apático o
mesmo peso eleitoral de um entusiasta não pode satisfazer nosso próprio
critério. O apático jamais entraria em um combate — portanto, as atuais
democracias sistematicamente distorcem os resultados eleitorais em relação aos
hipotéticos resultados de um combate.
É
provável que nenhum procedimento de eleição democrática seja satisfatório na
resolução desse problema. Porém, é certo que muito poderia ser feito para
alterar as formas atuais, de modo a trazê-las para mais perto de nosso
teste.
A
tendência de todas as atuais democracias tem sido a de tornar o voto mais fácil
para as pessoas. Porem, isso viola
diretamente o teste, pois isso significa mais facilidades para os apáticos
registrarem seus votos. E quanto mais peso é dado aos votos dos apáticos,
mais longe a democracia fica da satisfação de seus próprios critérios.
Claramente,
o que se necessita é tornar a votação bem mais difícil, de modo a
garantir que apenas as pessoas mais intensamente interessadas irão votar.
Uma medida útil seria remover todos os nomes das urnas, de modo a exigir que
todos os eleitores escrevessem por conta própria os nomes de seus candidatos
favoritos, podendo assim eleger absolutamente qualquer cidadão. Não
apenas isso iria eliminar esse definitivamente antidemocrático privilégio
especial que o estado dá àqueles cujos nomes estão nas urnas, mas também nos
deixaria mais perto de nosso critério, pois um eleitor que não sabe o nome de
seu candidato favorito dificilmente teria guerreado nas ruas em nome dele.
Desta
forma vemos que o argumento da mudança pacífica, longe de endossar todas as
atuais democracias, requer mudanças vitais e radicais nas atuais estruturas
democráticas. Por uma total questão de lógica, aqueles que dizem que a
democracia é o melhor sistema disponível (porque é o único que garante uma
troca pacífica de governo) deveriam defender alterações profundas no atual
sistema eleitoral. Para contrabalançar
as diferenças de força física, todos aqueles cidadãos não aptos para o combate
corporal teriam de ser privados do voto; e votos plurais teriam de ser
designados para soldados e policiais.
Igualmente,
para contrabalançar as diferenças de interesse e entusiasmo, o processo
eleitoral teria de ser dificultado, e não facilitado, incluindo-se aí a
imposição de que as pessoas escrevessem o nome de qualquer pessoa de seu
interesse.
E,
mesmo assim, é provável que ainda restassem sérias distorções, pois meros
ajustes nas regras de votação não podem igualar o interesse e o entusiasmo
necessários para induzir os cidadãos a guerrearem nas ruas em nome de seu
programa ou de seu partido.
É
possível, portanto, que o argumento da mudança pacífica seja autocontraditório,
e que tal critério jamais seja cumprido. Porém, mesmo se desconsiderarmos
essas distorções inerentes, as atuais democracias certamente jamais poderiam
ser justificadas por esse argumento, e mudanças radicais exatamente como as
esboçadas acima seriam necessárias.
Logo,
a democracia atual, marcada especialmente pela votação
gratuita e pelo sistema de "um homem-um voto", não pode ser defendida
— sendo, na verdade, negada — pelo predominante argumento da "mudança
pacífica de governo". Ou esse argumento é abandonado — e inventa-se
outro —, ou todo o sistema deve ser abandonado.
Fonte:Mises
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