Burocratas gerenciando o livre comércio. Isso não seria uma contradição?
Existe uma diferença crucial,
praticamente intransponível, entre "livre comércio" e "acordos de livre comércio".
Livre comércio
significa simplesmente você e eu transacionarmos livremente com quem quisermos,
não importa se a outra pessoa está do outro lado da rua ou do outro lado do
globo. Não há barreiras, não há tarifas,
não há imposições governamentais.
Já "acordos de livre
comércio" são apenas uma forma de mercantilismo disfarçado.
Em primeiro lugar, um
genuíno livre comércio não requer um "tratado"
ou um "acordo comercial". Se um
governo genuinamente quisesse um livre comércio, tudo o que ele teria de fazer
seria abolir as inúmeras tarifas de importação, as cotas de importação, as leis
"anti-dumping", e todas as outras restrições estatais impostas ao
comércio. Não é necessária nenhuma política externa ou manobra conjunta.
No entanto, os governos
que assinam os tratados de "livre comércio" sempre se certificam de que todas
as cláusulas serão boas para suas empresas nacionais, e não necessariamente
para os consumidores do país. Enquanto os genuínos defensores do livre comércio
vêem o livre mercado e o comércio, doméstico ou internacional, do ponto de
vista do consumidor (isto é, de todos nós), o mercantilista, seja do século XVI
ou de hoje, vê o comércio do ponto de vista das grandes empresas nacionais que
estão em conluio com o governo.
Genuínos defensores do
livre comércio consideram as exportações um simples meio de pagar pelas
importações e sempre têm o interesse do consumidor em primeiro lugar. Já os mercantilistas querem apenas privilegiar
as grandes empresas nacionais em detrimento de todos os consumidores,
sejam eles domésticos ou estrangeiros.
Por tudo isso, vale
repetir: o livre comércio não requer
tratados. Todo o necessário para que haja um livre comércio é que se
removam (unilateral ou multilateralmente) todas as barreiras artificiais ao
comércio: a Inglaterra fez isso em meados do século XIX, Hong Kong o fez em
meados do século XX.
Para se ter uma ideia,
em 1879, a Constituição dos Estados Unidos usou apenas 54 palavras
para estabelecer o livre comércio entre os estados. Já o NAFTA, o acordo de
"livre" comércio entre o Canadá, o México e os EUA tem duas mil
páginas, novecentas das quais se referem unicamente a tarifas.
O tamanho mastodôntico desses
acordos de comércio, com suas miríades de estipulações e controles — tais como
regras sobre a origem e a correspondente inspeção de produtos, exigências de
verificação, unificação de leis ambientais e a interferência em assuntos
soberanos, como leis trabalhistas — desvirtuam completamente seu nome.
Acordos de "livre comércio" vêm
sempre cheios da palavra "exceção". Aqueles que sabem manusear
suas influências políticas por meio de grupos de interesses sempre recorrem a
"favores" para se protegerem da concorrência externa. Em vez de
livre comércio, o que esses acordos criam é um sistema de comércio dirigido e
manipulado, além de — como era de se esperar — muitos, caros e inúteis
empregos para burocratas, empregos estes que só servem para destruir a riqueza
dos países envolvidos.
Supervisionar e controlar o
comércio entre dois países faz tanto sentido econômico quanto supervisionar e
controlar o comércio entre os estados de um mesmo país.
Acordos comerciais têm também
outras implicações prejudiciais. Eles discriminam importações de baixo
custo de países que não fazem parte do tratado. O comércio com estes
países é ignorado em prol de fornecedores que, apesar de serem mais caros,
gozam de isenções fiscais, pois pertencem a países signatários do acordo. E
parte da receita tributária de que o governo abriu mão por causa do uso de
isenções tarifárias acaba se transformando em renda para o bolso do fornecedor
privilegiado.
Qualquer indivíduo que
realmente tenha a paciência de ler, na íntegra, os acordos comerciais atuais
não se surpreenderia em descobrir que eles se concentram cada vez menos
na redução das tarifas de importação e cada vez mais no "desenvolvimento
da indústria nacional", na promoção de exportações, na unificação de leis
ambientalistas e na afirmação de uma política doméstica. Seu verdadeiro
propósito — um protecionismo discreto — é ocultado por termos vagos como
"comércio mais livre e mais justo", "liberalização
gradual", "concessões recíprocas" e "pacotes de
desenvolvimento".
O livre comércio é o que nos mantém vivos
Há vários argumentos em prol de
um comércio mundial livre e irrestrito: maior concorrência para as
empresas nacionais, melhora substancial da qualidade dos produtos, maior
competitividade, maior soberania do consumidor, mais mercados para as
empresas.
O melhor, no entanto, é um dos
menos ressaltados: quanto mais livre é o comércio exterior, maior é a
possibilidade de fazermos o trabalho que mais nos agrada e que mais bem se
adapta aos nossos talentos individuais.
Apenas imagine viver em uma
sociedade na qual nosso trabalho diário serve unicamente ao propósito de sobrevivermos,
e não para desenvolver nossos talentos. Pois essa é a realidade nos países que mais
restringem o livre comércio: as pessoas, ao serem praticamente proibidas de
utilizar os frutos do seu trabalho para adquirir aqueles bens e serviços que
são mais bem produzidos por estrangeiros, acabam sendo obrigadas a desempenhar
várias atividades nas quais não têm nenhuma habilidade.
Uma pessoa boa em informática
acaba tendo de trabalhar como operário em uma siderurgia, pois seu governo
restringe a importação de aço, que poderia ser adquirido mais barato de
estrangeiros.
Estando isoladas da divisão
mundial do trabalho, tais pessoas trabalham apenas para sobreviver, e não para
desenvolver seus talentos. Elas não podem trabalhar naquilo em que realmente
são boas, pois a restrição ao livre comércio obriga os cidadãos a fazerem de
tudo, inclusive aquilo de que não entendem.
Isso é uma vida cruel.
Em países cujo comércio exterior
é mais livre, seus cidadãos possuem uma miríade de opções de trabalho: eles
podem ser financistas, instrutores de ioga, artistas, cineastas, chefs,
contadores e empreendedores do ramo de tecnologia. Tão rica e com tamanha
liberdade de comércio é a economia, que todos têm opções.
Já em sociedades fechadas, as
pessoas passam suas vidas lutando para apenas sobreviver, sendo obrigadas a
desempenhar várias atividades que não são do seu domínio.
Em países de economia mais
aberta, as pessoas, justamente por poderem adquirir bens e serviços fornecidos
por estrangeiros que são mais eficientes no suprimento destes, podem se
concentrar naquilo em que realmente são boas.
Em países de economia fechada,
as pessoas não têm essa opção, e engenheiros acabam virando operários de
fábricas.
Em países de economia aberta, o
lazer é um dado da realidade. As pessoas, justamente por não terem de perder
tempo trabalhando naquilo em que não são boas, podem dedicar boa parte do seu
tempo a passatempos de luxo, como esquiar.
Quantas pessoas podem se dar ao
luxo de se divertir luxuosamente em países como Myanmar, Zimbábue e Venezuela?
Apenas imagine como seria sua
vida se você tivesse de fabricar o computador (ou tablet ou smartphone) no qual
você está lendo este artigo, cultivar a comida que você come, criar as roupas
que você veste, e construir a estrutura na qual você mora. Caso tivesse de
fazer tudo isso, você certamente morreria esquálido, faminto, nu, desabrigado e
desempregado.
Graças ao livre comércio, no
entanto, você não é obrigado a se concentrar naquilo em que você não é bom. Em
vez disso, você pode apenas trocar os frutos do seu trabalho por todos aqueles
bens de consumo que você não é capaz de fabricar. Nesse cenário, quanto maior a sua liberdade
para adquirir esses bens — não importa se eles foram fabricados na sua cidade
ou em uma indústria do Vietnã —, melhor.
Conclusão
Livre comércio é sobre
barganhas e pechinchas. Os benefícios do comércio internacional não estão na
moderação e nem no grau de reciprocidade. Uma genuína política de livre
comércio seria a abolição de toda e qualquer barreira comercial, e esse deve
ser o objetivo unilateral de todo e qualquer país. Se os mercados fossem
libertos da mão pesada dos governos, o livre comércio internacional seria o
resultado automático e inevitável, e o padrão de vida da população mundial
aumentaria sobejamente.
A grande constatação dos
liberais clássicos britânicos foi justamente a de que o comércio não precisava
ser controlado nem domesticamente e nem internacionalmente. Consumidores
e produtores, independentemente de em que país viviam, eram capazes de negociar
seus próprios acordos, ao passo que tarifas e outras barreiras comerciais não
apenas prejudicavam os produtivos e eficientes, como beneficiavam apenas os
incompetentes.
Por isso, os liberais clássicos
defendiam a eliminação de todas as restrições sobre o comércio, e se opunham a
todo e qualquer tipo de gerenciamento governamental do comércio.
Mas os governos não gostam
desse sistema justamente porque ele os deixa de fora do esquema. É por
isso que, desde o início do século XX, os governos se organizaram para criar
uma superestrutura burocrática para gerenciar o comércio global — a Organização
Mundial do Comércio (OMC) — e também estruturas menores para gerenciar o comércio regional — Nafta, Mercosul etc.
E cada vez mais se apressam em assinar acordos de "livre
comércio" bilaterais, sempre com o intuito de garantir que não percam o controle sobre as transações
voluntárias feitas por indivíduos ao redor do mundo.
Fonte:Mises
Fonte:Mises
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