A guinada à esquerda na América Latina na primeira década do século XXI, bem
como a abertura comercial e as privatizações da década anterior, não são obras
do acaso, ditadas somente pela alternância de tendências ideológicas, nem
tampouco fruto de misteriosas necessidades históricas. O apelo à
inevitabilidade da globalização, comum na década de 1990, ou a crença em uma
marcha inexorável rumo a uma sociedade mais livre a partir da queda do muro de
Berlim sempre me pareceram como estranhamente próximos à crença marxista em uma
evolução pré-determinada rumo ao paraíso socialista.
Aqueles dois momentos da história latino-americana podem, pelo contrário,
ser explicados por uma teoria econômica de ciclos intervencionistas, inspirada
na obra do economista austríaco Ludwig von Mises, que desnudou as "contradições
internas" do intervencionismo.
O apelo a uma teoria do intervencionismo, contudo, esbarra em resistências
ideológicas. A ideologia dominante no presente condena qualquer tentativa
sistemática de analisar o intervencionismo como um sistema econômico em si,
sujeito a deficiências próprias a esse sistema. Os defensores dessa ideologia intervencionista
acreditam na sabedoria de uma posição intermediária entre os extremos
coletivista e liberal, vistos como inerentemente dogmáticos.
Mas, ironicamente, esse discurso é muito pouco tolerante: qualquer discussão
sobre o papel do estado ou sobre a lógica da ação estatal é enfaticamente
vetada. Impõe-se então que a análise das intervenções estatais deve ser sempre
pragmática — caso a caso, de forma que o sistema intervencionista em si não
possa jamais ser contestado. O resultado disso é uma forma de historicismo: as
intervenções estatais na economia não seriam sujeitas a nenhuma regularidade
que mereça uma teoria.
A despeito desse clima hostil, diversos economistas desenvolveram de fato
teorias sobre falhas de governo, que têm sido fartamente corroboradas pela
história. Essas teorias podem ser combinadas para desenvolver uma econômica do
intervencionismo, que esboçaremos aqui.
O primeiro passo da nossa análise é substituir a dicotomia
"capitalismo-socialismo" (e as noções marxistas de modo de produção e
classes que acompanham essa caracterização) pela dicotomia "economia pura
de mercado—economia planificada centralmente" e reconhecer que os países
do mundo real não são capitalistas ou socialistas, mas economias mistas
situadas entre os extremos de estado zero e estado máximo.
Se fossem encontrados no mundo real, esses extremos seriam instáveis. O
planejamento central não é possível: como demonstrou Mises na sua crítica ao
socialismo, sem propriedade privada não existem mercados e preços. Sem preços
de mercado, não há como alocar recursos escassos, a menos que o planejador
central seja onisciente ou que a complexidade e produtividade da economia
moderna sejam abandonadas. Mas isso condenaria à morte a maior parte da
população mundial presente, levando-nos de volta a sociedades tribais. Para não
perder o poder com o colapso econômico de seu regime, o estado totalitário tem
que fazer concessões à atividade livre dos indivíduos.
No extremo oposto, uma sociedade sem coerção estatal oferece incentivos
quase irresistíveis à atividade de predação da riqueza por parte de um
subconjunto da população. A organização do estado, cuja justificativa teórica
padrão o coloca como o defensor dos indivíduos e de sua propriedade contra a
violência perpetrada por outros, abre caminho para que o sentido das leis seja
subvertido de modo a justificar a expropriação da riqueza através do próprio
estado, o que o torna o grande veículo de exploração na sociedade.
Com efeito, como apontaram vários economistas ao longo da história, de
Turgot e Smith no século XVIII, passando por Bastiat no século XIX, até
Buchanan, Tullock, Mises e Hayek no século XX, o poder de "legislar"
sobre assuntos econômicos abre a caixa de Pandora da atividade de busca por
privilégios legais (rent-seeking, na linguagem da Escola da Escolha
Pública).
A possibilidade de "pilhagem legal" de que fala Bastiat gera
uma tendência ao crescimento do estado e à sua interferência nos mercados.
Essa situação, por sua vez, aumenta o ganho de se dedicar às atividades de busca
de privilégios em detrimento de atividades de produção e de trocas voluntárias, levando à
estagnação econômica. Além disso, as intervenções geram consequências opostas
do intencionado, como enfatiza Hayek. No que mais, políticas keynesianas que
pretendiam estabilizar as economias geraram déficits crônicos, que perpetuaram
os desequilíbrios macroeconômicos; a construção do estado de bem-estar, por sua
vez, falhou em resgatar a população da pobreza, causando dependência do estado
e enrijecendo a economia, prejudicando o crescimento econômico.
As falhas de governo, entretanto, geram demanda por mais intervenção, na
medida em que a ideologia intervencionista joga a culpa de seus próprios
fracassos no "capitalismo" e não no próprio intervencionismo. (Veja o
exemplo recente da reação-padrão à crise econômica iniciada em
2008.) Novas intervenções são adotadas para corrigir o que na verdade é
fruto de intervenções anteriores. Isso reforça a fase do ciclo de expansão do
estado.
Com o tempo, porém, essa tendência desacelera. Utilizando um exemplo de Mises em sua
crítica ao intervencionismo, se um produto visto como essencial não é abundante
o bastante, o governo controla seu preço. Isso gera uma diminuição ainda maior
na sua disponibilidade, pois os empresários têm prejuízos sob o preço
controlado, o que convida ao controle dos preços de seus insumos, propagando o
problema original para o restante da cadeia produtiva. Progressivas
substituições das trocas voluntárias por ordens centrais tornam o problema do
controle da produção cada vez mais complexo. No limite, temos novamente o
problema da impossibilidade do planejamento central.
Quando as distorções causadas pelas intervenções se tornam graves o
bastante, a ideologia intervencionista diminui um pouco sua influência. Até
mesmo os defensores moderados do estado interventor descobrem que é impossível
criar riqueza por decreto, por impressão de moeda ou por gastos públicos. No
Brasil, o simples reconhecimento de que "não existe almoço grátis"
foi taxado de neoliberal, embora FHC tenha preferido explorar outras fontes de
financiamento do estado a de fato promover reformas liberais. Contudo, algumas
dessas reformas, mesmo tímidas, foram implantadas. O tamanho do estado,
entretanto, continuou aumentando, o que não impediu os analistas de atribuir os
males do intervencionismo à globalização ou ao neoliberalismo.
Conforme o estado se expande, e as falhas de governo se acumulam, diminui o
espaço de manobras dos governos. Porém, é o acúmulo de falhas de governo, e não
um inexistente liberalismo, o que explica a falta de alternativas de políticas
econômicas à disposição dos governantes. Os leigos reclamam da escassez de
líderes. Os intelectuais, por sua
vez, buscam uma mítica "terceira via",
ignorando que nossos males são causados justamente porque vivemos na terceira
via.
Tudo isso abre espaço para a fase contracionista do ciclo de expansão do
estado. Aqui, porém, nossa explicação se afasta um pouco das ideias de Mises.
Esse autor mostrou de fato que o intervencionismo não é um sistema consistente:
a lógica do intervencionismo leva a uma escolha entre um controle cada vez
maior da economia ou o abandono desse controle. Porém, a despeito disso, o
intervencionismo (ou mercantilismo) não é transitório, mas sim a forma de
organização social mais estável da história (levando em conta as sociedades que
avançaram além de um estágio tribal).
A opinião de Mises pode ser explicada pelo seu racionalismo: no longo prazo,
a argumentação racional vence, de modo que um sistema inconsistente deve ser
abandonado. Mas, se utilizarmos uma visão de mundo mais próxima de Hayek, para
quem a mudança institucional é vista como a evolução de uma ordem espontânea e
não como algo implementado racionalmente, a estabilidade do intervencionismo
pode ser mais bem entendida pela interação de forças ideológicas e econômicas,
como desenvolvido na teoria dos ciclos intervencionistas.
Pelo lado ideológico, assim que uma reforma liberalizante alivia os males
causados pelo acúmulo de intervenções, aumenta novamente a demanda pelas mesmas
intervenções, na medida em que a hostilidade aos mercados for uma força
presente. Se prestarmos atenção a tudo que a história já mostrou, essa
hostilidade não é apenas um fenômeno atual. Hayek, em seu livro The Fatal Conceit: the errors of socialism,
mostra que em épocas e civilizações passadas o sentido de repugnância aos
mercados é uma constante. Para o autor, isso é
explicado pela moral tribal que marcou a evolução cultural da humanidade. Essa
moral rejeita o tipo de normas abstratas necessárias para o convívio em uma
sociedade mais complexa.
Considerando fatores de natureza ideológica (demanda por controle) e de
interesses (a busca por privilégios sempre que existir um poder político capaz
de fornecê-los), podemos entender por que, assim que algumas reformas
liberalizantes sejam tomadas e surtam efeito, aliviando a crise do intervencionismo,
ressurge a pressão pelo aumento do estado e declina o ímpeto reformador.
As reformas também podem ser adiadas pela ação de outros fatores. A
inundação de crédito orquestrada pelos bancos centrais dos países
desenvolvidos, em especial o americano (Fed), responsável pelo ciclo de
crescimento artificial que resultou na crise econômica recente, influenciou
diretamente a dinâmica do ciclo interventor na América Latina. No Brasil, a
abundância de crédito externo alimentou o crescimento do estado intervencionista,
virtualmente silenciando as vozes que apontam para a urgência de reformas. O
mesmo boom artificial inflou o preço do petróleo, que sustentou a recente
experiência socialista na Venezuela.
Embora isso permita uma pequena margem de manobra para governantes
populistas retomarem as velhas políticas intervencionistas, refutadas milhares
de vezes, a dinâmica de fracassos acumulados da fase expansionista do estado
continua operando. Se a desorganização do sistema econômico, como aquele que
ocorre na Venezuela, com estagnação, inflação ou escassez de produtos básicos
levarem no futuro ao abandono do chavismo e a uma fase de contração do estado,
ou se teremos um empobrecimento secular, como ocorre na Argentina, que não
consegue se livrar da herança peronista, é algo incerto.
Uma teoria de ciclos intervencionistas, ao contrário do determinismo
marxista, típico do século XIX, deve reconhecer a complexidade de fatores
atuantes, apresentando vários cenários possíveis.
A teoria esboçada aqui se assemelha a um modelo biológico de
parasita-hospedeiro, empregado para explicar a dinâmica do intervencionismo. A
atividade parasitária mina a vitalidade do hospedeiro, de forma que, no longo
prazo, o parasita pode se tornar irremediavelmente enfraquecido.
Fonte:Mises
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