Este
artigo é a segunda e última parte da entrevista concedida por Hans-Hermann Hoppe à revista Wirtschaftswoche,
o principal semanário da Alemanha sobre economia e negócios, e foi conduzida
por Malte Fischer. A primeira parte, que versou sobre economia global e
secessão, pode ser lida
aqui.
Independentemente do número de territórios soberanos, ainda resta a questão do tamanho do governo. Os liberais clássicos sugerem que o estado seja um mero 'guarda noturno', o qual se limita a garantir a liberdade, a propriedade e a paz. Mas o senhor não quer estado nenhum. Por quê?
Os liberais clássicos subestimam a inerente
tendência de qualquer arranjo estatal ao inchaço. Essa é uma propensão irreversível. Quem determina quantos policiais, quantos
juízes e quantos soldados — todos eles financiados por impostos — haverá em
um estado mínimo voltado exclusivamente para a segurança e para os serviços
judiciais?
No mercado, onde bens e serviços são
demandados e pagos voluntariamente, a resposta é clara: bens e serviços
serão produzidos na quantidade e aos preços que os consumidores
estiverem dispostos a pagar. Por outro lado,
no que tange ao governo de qualquer país, a pergunta "quanto?" será
sempre respondida da mesma maneira: quanto mais dinheiro você nos der,
mais
poderemos fazer por você.
Dado que o governo pode obrigar seus cidadãos
a pagar impostos, o governo sempre irá exigir cada vez mais dinheiro e, em
troca, ofertará serviços de qualidade cada vez pior, dado que o governo não
opera em ambiente concorrencial. A ideia
de um estado mínimo, principalmente em uma democracia, é um projeto
conceitualmente falho. Estados mínimos jamais permanecem mínimos.
Então
não deveria haver estado nem sequer para proteger a propriedade, e para
fornecer serviços de segurança e de justiça?
Se o estado for proteger a propriedade
utilizando uma polícia estatal, então ele terá de coercivamente coletar
impostos. No entanto, impostos são
expropriação. Desta maneira, o estado
paradoxalmente se transforma em um expropriador protetor da
propriedade. Não faz sentido. Ademais, um estado que quer manter a lei
e a
ordem, mas que pode ele próprio criar leis, será ao mesmo tempo um
transgressor
e um mantenedor da lei.
E isso tem de ficar claro: o estado não
nos defende; ao contrário, o estado nos agride,
confisca nossa propriedade e a utiliza para se defender a si próprio.
A definição padrão do estado é essa: o estado é uma agência caracterizada por
duas feições exclusivas e logicamente conectadas entre si. Primeiro, o
estado é uma agência que exerce o monopólio compulsório da jurisdição de seu
território; o estado é o tomador supremo de decisões. Ou seja, o estado é
o árbitro e juiz supremo de todos os casos de conflito, incluindo aqueles
conflitos que envolvem ele próprio e seus funcionários. Não há qualquer
possibilidade de apelação que esteja acima e além do estado. Segundo, o
estado é uma agência que exerce o monopólio territorial da tributação. Ou
seja, é uma agência que pode determinar unilateralmente o preço que seus
súditos devem pagar pelos seus serviços de juiz supremo. Baseando-se
nesse arranjo institucional, você pode seguramente prever quais serão as
consequências:
a) em vez de impedir e solucionar conflitos,
alguém que possua o monopólio da tomada suprema de decisões irá gerar e provocar conflitos
com o intuito de resolvê-los em benefício próprio. Isto é, o estado não
reconhece e protege as leis existentes, mas as distorce e corrompe por meio da
legislação. Contradição número um: o estado é, como dito, um transgressor
mantenedor das leis.
b) em vez de defender e proteger alguém ou
alguma coisa, um monopolista da tributação irá invariavelmente se esforçar
para maximizar seus gastos com proteção e ao mesmo tempo minimizar a
real produção de proteção. Quanto mais dinheiro o estado puder
gastar e quanto menos ele tiver de trabalhar para obter esse dinheiro, melhor
será a sua situação. Contradição número dois: o estado é, como dito, um
expropriador protetor da propriedade.
Então,
para quem o senhor gostaria de transferir a tarefa de proteger direitos e
propriedade?
Tais tarefas devem ser realizadas por aquelas
empresas privadas que comprovadamente demonstrarem competência em um mercado
livre e concorrencial — exatamente como ocorre com os outros serviços.
Em uma sociedade de leis privadas, a produção
de lei e ordem — de segurança — seria feita por indivíduos e agências
livremente financiados, concorrendo entre si por uma clientela disposta a pagar
(ou a não pagar) voluntariamente por tais serviços — exatamente como ocorre
com a produção de todos os outros bens e serviços. Como esse sistema
funcionaria é algo que pode ser mais bem compreendido ao contrastarmos tal
sistema com o funcionamento do nosso atual e totalmente conhecido sistema
estatista.
Se quisermos resumir em uma única palavra a
diferença (e a vantagem) decisiva entre uma indústria de segurança operando em
ambiente concorrencial e a atual prática estatista, essa palavra seria: contrato.
O estado opera em um vácuo jurídico.
Não existe nenhum contrato entre o estado e seus cidadãos. Não está
determinado contratualmente o que de fato pertence a quem; consequentemente,
não está determinado o que deve ser protegido. Não está determinado qual
serviço o estado deve fornecer, nem o que deve acontecer caso o estado falhe em
cumprir seu dever, e nem qual preço o "consumidor" de tais
"serviços" deve pagar. Ao contrário: o estado determina
unilateralmente as regras do jogo, podendo mudá-las, por mera legislação,
durante o jogo.
Obviamente, tal comportamento seria
inconcebível para fornecedores de serviços de segurança financiados
livremente. Apenas imagine um fornecedor de serviços de segurança — seja
uma polícia, uma seguradora ou um tribunal de arbitragem — cuja oferta
consistisse em algo mais ou menos assim: "Eu não vou contratualmente
garantir nada a você; não irei lhe dizer o que estou obrigado a fazer caso você
não fique satisfeito com meus serviços. Porém, mesmo assim, eu me reservo
o direito de determinar unilateralmente o preço que você deve me pagar por tais
serviços indefinidos."
Qualquer fornecedor de serviços de segurança
desse tipo iria imediatamente desaparecer do mercado em decorrência de uma
total falta de clientes.
Em vez de agir assim, cada produtor de
serviços de segurança, sempre financiado livremente, teria de oferecer um
contrato aos seus clientes em potencial. E esses contratos — a fim de
serem considerados aceitáveis para consumidores que estão pagando
voluntariamente por eles — devem conter cláusulas e descrições totalmente
claras, bem como serviços e obrigações mútuas claramente definidos. Cada
uma das partes do contrato, ao longo de sua duração e até o vencimento do
contrato, estaria vinculada a ele de acordo com seus termos e condições; e
qualquer mudança nos termos ou nas condições iria requerer o consentimento
unânime de todos os lados envolvidos.
Mais especificamente, para serem tidos como
aceitáveis por seus potenciais compradores, esses contratos teriam de conter
cláusulas especificando o que será feito no caso de um conflito ou desavença entre
a agência de segurança (ou seguradora) e seus segurados, bem como no caso de um
conflito entre diferentes agências de proteção e seus respectivos
clientes. E, nesses casos, apenas uma solução mutuamente acordada é
possível: os lados em discórdia concordariam contratualmente em recorrer a um
tribunal de arbitragem comandado por algum agente que seja independente e que
goze da confiança mútua desses dois lados.
E quanto a esse agente, ele também deve ser
financiado no livre mercado, além de sofrer a concorrência de vários outros
arbitradores e agências de arbitragem. Seus clientes — isto é, as
seguradoras e os segurados — esperam que ele dê um veredito que seja
reconhecido por todos como sendo justo e imparcial. Somente arbitradores
capazes de dar vereditos justos e imparciais terão êxito no mercado de
arbitramento. Arbitradores incapazes disso, e consequentemente vistos
como parciais ou tendenciosos, irão desaparecer do mercado.
E
como seriam definidas as leis e como seria sua aplicação?
Em primeiro lugar, é preciso deixar claro
que, se não houvesse conflitos entre indivíduos e todos nós vivêssemos em
perfeita harmonia, não haveria nenhuma necessidade de leis ou normas. O
propósito de leis ou normas é justamente o de ajudar a evitar conflitos que de
outra forma seriam inevitáveis. Somente as leis que atingem esse objetivo
podem ser chamadas de leis boas. Uma lei que gera conflitos
em vez de ajudar a evitá-los é contrária ao propósito intrínseco de qualquer
lei —ou seja, trata-se de uma lei ruim, disfuncional e corrupta.
Em segundo lugar, é preciso entender que toda
e qualquer sociedade tem como característica intrínseca conflitos de
propriedade sobre bens escassos. Conflitos ocorrem porque vivemos em um mundo
de escassez, onde os bens são escassos. Afinal, se os bens
são escassos, eles não podem ser de todos.
É necessário haver propriedade sobre eles. As pessoas entram em choque porque querem
utilizar exatamente o mesmo bem de maneiras distintas e incompatíveis. Ou
eu venço a briga e utilizo tal bem do meu jeito, ou você vence e utiliza tal
bem do seu jeito. É impossível que nós dois saiamos
"ganhadores". No caso de bens escassos, portanto, são
necessárias regras ou leis que nos ajudem a solucionar reivindicações rivais e
conflituosas.
Mas não é necessário que seja o estado quem
irá resolver tais conflitos.
Logo, todos os conflitos relacionados ao uso
de bens escassos, poderão ser evitados apenas se cada bem for propriedade
privada, isto é, se cada bem escasso for exclusivamente controlado por um
indivíduo (ou grupo de indivíduos) específico — e não por vários indivíduos
não-especificados —, e sempre for deixado claro qual bem é propriedade de
quem, e qual não é. E, para que os conflitos fossem evitados desde
o início da humanidade, por assim dizer, seria necessário ter uma regra
determinando que a primeira apropriação original de algum
recurso escasso e até então sem dono configuraria propriedade privada.
Sendo assim, existem essencialmente três
"leis boas" que podem garantir uma interação humana sem a ocorrência
de conflitos (ou a "paz eterna"):
a) aquele que se apropria de algo até então
sem dono torna-se o seu proprietário exclusivo (na condição de primeiro
proprietário, ele logicamente não entrou em conflito com ninguém, dado que todas
as outras pessoas apareceram em cena apenas mais tarde);
b) aquele que produz algo utilizando tanto o
seu próprio corpo quanto os bens dos quais se apropriou originalmente torna-se
o proprietário único e legítimo do produto de seu trabalho — desde que ele,
nesse processo, não danifique a integridade física da propriedade de terceiros;
e
c) aquele que adquire um bem de algum
proprietário por meio de uma troca voluntária — isto é, uma troca
considerada a priori como mutuamente benéfica — torna-se o
novo proprietário desse bem.
Portanto, tendo este pano de fundo, imagine
agora uma sociedade sem estado. Nesta
ordem natural, cada indivíduo que for o primeiro a se apropriar de algo irá se
tornar o proprietário original dos bens que ele controla. Quem sugerir o contrário terá o ônus da
prova. Neste arranjo, conflitos serão
resolvidos por uma autoridade natural.
Em vilarejos, esta autoridade natural são aquelas pessoas que forem respeitadas
por todos; elas atuarão como juízes. Se
houver alguma contenda envolvendo pessoas pertencentes a comunidades distintas,
e que recorrerem a juízes distintos, o conflito terá de ser arbitrado no nível
superior mais próximo. O que é
importante é que nenhum juiz detenha o monopólio da aplicação de leis.
O mesmo raciocínio se aplica a qualquer
cidade, de qualquer tamanho, dado que toda e qualquer cidade está dividida em
bairros, que funcionam como se fossem vilarejos integrados.
Isso
soa muito irrealista...
... mas não é! Apenas veja como as contendas transnacionais
são resolvidas atualmente. Em nível
internacional, já existe uma espécie de anarquia jurídica, pois não há
um
governo mundial que a tudo regula. Por
exemplo, pense na cidade da Basileia.
Ela está localizada em uma tríplice fronteira entre Suíça, França e
Alemanha. O que seus cidadãos fazem quando há uma
contenda entre eles? Em primeiro lugar,
eles irão contatar suas respectivas jurisdições. Se não houver nenhum
acordo, arbitradores
independentes são convocados para resolver o caso. Por acaso existem
mais contendas entre os
cidadãos desta região do que entre cidadãos de Dusseldorf e Colônia?
Nunca ouvi falar. Isso mostra que é possível regular disputas
interpessoais pacificamente, sem que haja um estado detentor do
monopólio do
justiça.
Um
sistema jurídico sem estado provavelmente está muito além da imaginação das
pessoas.
Por quê?
Basicamente, são ideias facilmente compreensíveis que, ao longo dos
séculos, foram abolidas e extirpadas de nós por apologistas do poder
estatal. Foi um grande erro evolucionário
substituir a liberdade de escolha das pessoas em termos legais por um monopólio
estatal da legislação. Este atual estado
de coisas levou a um arranjo em que, nas eleições, uma horda ignara adquire
cargos governamentais e utiliza seu poder legiferante para se enriquecer
expropriando a propriedade daqueles que possuem mais riquezas do que eles
próprios. Já o chefe de um clã que seja
voluntariamente escolhido como um arbitrador de disputas normalmente será um
indivíduo já rico que não terá motivos para querer tomar para si a propriedade
de terceiros. Caso contrário, ele não
seria escolhido voluntariamente como arbitrador.
Como,
em um mundo sem a ordem do estado, poderíamos impedir a violação de direitos
elementares à liberdade, como o direito à integridade física?
Contra-pergunta: por acaso tais violações são
atualmente impedidas pela existência do estado?
Como está a violência em países que têm um estado grande e onipresente,
como os da América Latina?
Enquanto os humanos forem humanos, sempre
existirão áreas em que haverá homicídios e assaltos. Os governos conseguiram melhorar esta
situação? Tenho minhas dúvidas. Governos também são geridos por humanos. Porém, ao contrário de uma sociedade sem
estado, os líderes detêm um monopólio sobre sua posição de poder.
Isso por acaso não torna estas pessoas piores
do que já são? Humanos não são anjos;
frequentemente fazem maldades e causam enormes estragos. Por este motivo, a melhor defesa da liberdade
e da propriedade é não permitir que ninguém crie um monopólio protegido por
lei. Tão logo exista um monopólio
protegido por lei, não serão exatamente seres angelicais que surgirão dele.
Suponhamos
que sigamos suas ideias e transfiramos as clássicas funções do estado, como a
proteção da propriedade e da imposição da justiça, para organizações
privadas. Imediatamente teríamos de
lidar com o problema de que, também nestas organizações, os homens maus podem
assumir o comando e criar cartéis à custa dos cidadãos.
O risco de isso ocorrer é baixo. Cartéis só conseguem sobreviver no longo
prazo se o estado protegê-los. Isso
ocorre hoje justamente em todos os setores da economia que são controlados por
agências reguladoras, as quais existem para impedir que novas empresas entrem
no mercado, façam concorrência e perturbem a tranquilidade das empresas já
estabelecidas e que são as preferidas do estado.
Cartéis nunca se sustentaram no livre
mercado. O que tradicionalmente sempre
ocorreu foi o seguinte: as grandes empresas começaram a se unir para dividir o
mercado exclusivamente entre elas; no entanto, tal arranjo, por elevar os
preços e reduzir a qualidade dos serviços, acaba beneficiando os membros mais
ineficientes deste cartel e prejudicando os mais eficientes. Estes percebem que podem conquistar uma maior
fatia de mercado fora do cartel. Tão
logo eles percebem isso, o cartel se esfacela.
Mas
até que isso ocorra, os membros do cartel exploram os cidadãos.
Esse seu raciocínio é o que eu chamo de "se
suicidar por medo de morrer". Se você
transfere tal tarefa ao estado, então você está dando a ele logo de partida um
monopólio total. E ele certamente irá
abusar deste monopólio para restringir a liberdade dos cidadãos.
Em
uma sociedade sem estado e com leis privadas, como lidar com o problema das
externalidades? Por exemplo, quem iria
fazer com que poluidores ambientais também tivessem de arcar com os custos?
Esse problema é fácil de ser resolvido. Basta você conferir à parte prejudicada o
direito de tomar medidas judiciais contra o agressor. Ato contínuo, ela poderá processar o causador
do estrago, fazendo com que esta lhe dê um pagamento indenizatório. No século XIX, era uma prática comum os
cidadãos processarem empresas que danificassem sua propriedade em decorrência
de poluição. Com o tempo, o estado
começou a limitar o direito de apelação, tudo com o intuito de proteger
determinadas indústrias.
Por isso, e como expliquei anteriormente, é
crucial que os direitos de propriedade sejam claramente atribuídos. O princípio básico tem de ser: quem for o
primeiro a se apropriar de um local ainda inutilizado e sem dono, adquire os
direitos de propriedade.
Por exemplo, se uma indústria construir uma
planta que apresente uma intensa emissão de poluentes nas vizinhanças de um
determinado bairro residencial, então estes moradores — que chegaram lá
primeiro — podem processar a empresa e pedir indenização. Trata-se de um princípio simples que até
mesmo crianças conseguem entender. Nos
EUA, durante a época da corrida do ouro, vários critérios foram estabelecidos
sem a intromissão o estado. E várias
pessoas registraram suas queixas contra mineradores. Isso mostra que questões de transgressão de
propriedade podem ser resolvidas sem o estado.
E
a questão das forças armadas? Não dá
para organizar a defesa nacional sem o estado, e ninguém pode ser excluído da
segurança fornecida por um exército.
Logo, você precisa do estado para obrigar todos os cidadãos a pagarem
impostos para financiar as forças armadas.
E quem disse que absolutamente todos os
cidadãos querem ser defendidos por um exército?
De novo, vivemos em um mundo de escassez. O dinheiro que for gasto com defesa não mais
estará disponível para ser gasto em outros propósitos. Algumas pessoas talvez não queiram ser
defendidas e, em vez disso, preferem pagar por férias no Havaí. No caso de um ataque externo, elas
provavelmente iriam optar por deixar o país e, sendo assim, elas não precisam
de defesa de nenhum exército.
O estado não tem nenhum direito de obrigar
estas pessoas a pagar impostos para financiar forças armadas. Em uma sociedade sem estado, as pessoas
podem, se assim o desejarem, criar pequenas unidades de segurança, como
vigilâncias comunitárias. Podem também
se defender por conta própria por meio do uso de armas. Ou podem ainda contratar segurança
privada. Elas teriam a liberdade de
decidir livremente como iriam gastar seu próprio dinheiro.
Fonte:Mises
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