A seguinte entrevista com Hans-Hermann Hoppe foi publicada na revista Wirtschaftswoche, o principal semanário da Alemanha sobre economia e negócios, e foi conduzida por Malte Fischer.
Professor Hoppe, ao redor do mundo estamos vivenciando, novamente, uma crescente intervenção do estado tanto na economia quanto na sociedade. Vários cidadãos querem mais governos e menos mercado. Como o senhor explica isso?
Se há algo que a história nos mostra de maneira cristalina é que crises promovem o crescimento do estado. Isso é particularmente mais evidente em casos de guerras e de ataques terroristas.
Os governos utilizam essas crises em proveito próprio para posarem de solucionadores de problemas. Isso também se aplica à crise financeira. Ela forneceu aos governos e aos bancos centrais a providencial oportunidade de intervirem ainda mais na economia e na sociedade. Os políticos foram bem-sucedidos em atribuir a culpa da crise ao capitalismo, ao mercado e à ganância.
Sem a intervenção dos governos, na forma de programas de estímulos, e dos bancos centrais, na forma de injeções de liquidez, o mundo não estaria hoje mergulhado em uma profunda recessão, como nos anos 1930?
Há esse juízo falso de que os governos e os bancos centrais podem ajudar a economia com programas que a ajudam a se recuperar. Até mesmo na década de 1930, nos EUA, foram implantados vários programas de estímulos. Mas a Grande Depressão realmente só acabou após o fim da Segunda Guerra Mundial. Nos anos anteriores à guerra, a taxa de desemprego jamais ficou abaixo dos 15%. Os bancos estavam entesourando o dinheiro que lhes fora entregue pelo Banco Central em vez de emprestá-lo.
As circunstâncias atuais são similares. O dinheiro não está indo para o mercado de bens; por isso os preços mal estão subindo. Mas isso não significa que não esteja havendo inflação. Basta você olhar para as principais bolsas de valores do mundo e ver como elas estão se comportando; aí você vai identificar para onde exatamente está indo esse dinheiro criado pelos bancos centrais e entregue ao sistema bancário. A inflação está ocorrendo no mercado de ativos.
A bonança nos mercados de ações também é uma consequência das taxas de juros negativas que desestimulam o ato de poupar...
... e que colocam em risco nossa prosperidade. Uma economia só irá crescer de maneira saudável e duradoura se as pessoas estiveram poupando mais do que consumindo. É necessário poupar mais e consumir menos. Sem poupança, não há investimentos viáveis.
Por quê?
Vou dar um exemplo simples. Imagine Robinson Crusoé e Sexta-Feira em uma ilha deserta. Se Robinson pescar peixes e consumir somente alguns deles, mas não todos, ele poderá emprestar para Sexta-Feira os peixes que ele poupou. Sexta-Feira, então, poderá se alimentar destes peixes por alguns dias enquanto investe seu tempo na construção de uma rede de pesca para ele próprio. Com essa rede, Sexta-Feira poderá agora pegar um número tão grande de peixes, que ele não apenas será capaz de alimentar a si próprio como também poderá devolver a Robinson o mesmo número de peixes que este havia lhe dado. Mais ainda: Sexta-Feira, em princípio, torna-se capaz de quitar seu empréstimo junto a Robinson, mais juros, e ainda obter lucro na forma de peixes adicionais para si próprio.
Mas o que acontecerá se Robinson, em vez de poupar, simplesmente comer todos os peixes que pegou e, simultaneamente, der a Sexta-Feira certificados de papel que, em teoria, podem ser restituídos em peixes? Se Sexta-Feira decidir ir até Robinson para restituir seus certificados de papel em peixes, ele descobrirá que não há peixe nenhum com Robinson. Sendo assim, Sexta-Feira terá urgentemente de conseguir comida para si próprio e, consequentemente, não terá tempo para finalizar a construção da sua rede. A construção da rede será um projeto abandonado. O padrão de vida tanto de Sexta-Feira quanto de Crusoé estará agora menor.
Ou seja, todo este arranjo seria fisicamente impossível caso o empréstimo de Robinson para Sexta-Feira fosse apenas um pedaço de papel denominado em peixes, mas não lastreado por uma genuína poupança de peixes.
O que isso tem a ver com a nossa atual situação?
Algo similar ocorreu nas economias modernas na década de 2000. A expansão do crédito feita pelo sistema bancário em conjunto com seus respectivos bancos centrais nada mais foi do que um processo de criação de dinheiro do nada. Tal processo de criação de crédito reduziu artificialmente as taxas de juros e consequentemente estimulou vários tipos de investimentos, para os quais não havia uma correspondente poupança. As taxas de juros artificialmente baixas que vigoraram (e ainda vigoram) tanto na Europa quanto nos EUA não apenas não estimularam ninguém a poupar, como na realidade encorajaram todos a consumir desbragadamente — exatamente como os peixes de Crusoé não foram poupados, mas sim consumidos por ele.
O aumento do consumismo em conjunto com uma menor taxa de poupança leva a um aumento de preços e a um aumento do endividamento. Isso, por sua vez, faz com que os bancos passem a restringir mais o processo de criação de crédito. E essa maior restrição no crédito, em conjunto com o maior endividamento e os preços mais altos, gera um redução no consumo e no investimento. Os projetos que haviam sido iniciados e que até então pareciam lucrativos sofrem uma repentina queda na demanda (lembre-se de que não havia poupança para dar sustento a essa demanda futura). É aí que a economia entra em recessão.
Dado que nada mudou no comportamento dos bancos centrais desde então, podemos dizer que haverá uma nova crise?
Os bancos centrais estão tentando resolver a crise criando mais dinheiro e gerando mais crédito, ignorando completamente o fato de que a crise foi causada justamente por excesso de criação de dinheiro e de crédito. Logo, a próxima crise será ainda mais severa do que a última.
As autoridades monetárias, em especial o Fed, prometeram que irão enxugar a liquidez no momento certo, antes que a situação degringole.
Teoricamente, isso é possível. Os bancos centrais podem tentar reduzir a oferta monetária vendendo títulos do governo para o sistema bancário. O problema é que, na prática, isso até hoje nunca ocorreu. Mesmo porque tal medida vai contra o objetivo dos bancos centrais, que é o de manter as taxas de juros as mais baixas possíveis.
E produzir inflação?
Os bancos centrais de todo o mundo estão se esforçando ao máximo para manter o atual sistema monetário — que é todo baseado no dinheiro fiduciário — a todo o custo. Receio que o próximo passo será a eliminação do pouco que ainda resta da atual concorrência monetária global. Tal eliminação ocorrerá por meio de uma centralização do dinheiro e do sistema bancário. No final, é bem possível que surja algum tipo de banco central global, o qual irá manusear uma moeda única universal, resultante de uma fusão entre dólar, euro e iene. Livre da concorrência imposta por outras moedas, este banco central global teria então ainda mais espaço para inflacionar. A crise não apenas não acabaria, como ainda retornaria com força total em nível global.
Alguns economistas clamam por um padrão-ouro com o intuito de amarrar as mãos dos bancos centrais.
Governos e bancos centrais resistirão ferozmente a este arranjo. Na condição de monopolista estatal da distribuição do dinheiro, bancos centrais não têm absolutamente nenhum interesse em perder seu poder. Considero um retorno voluntário ao padrão-ouro algo totalmente irrealista.
E quanto à China? O país quer estabelecer o renminbi como a moeda de reserva internacional.
Para a China, seria uma medida esperta lastrear o renminbi em ouro, pois isso afetaria a dominância global do dólar. Com um renminbi lastreado em ouro, os dias de dominância econômica dos EUA e do dólar estariam contados. O Ocidente, portanto, irá fazer todo o possível para impedir que a China adote essa medida.
Na Europa, os governos e o Banco Central Europeu (BCE) ignoraram a lei e agiram acima da lei para socorrer o arranjo do euro. E não houve nenhum protesto público na Alemanha contra isso.
Os alemães aceitam passivamente receber ordens dos EUA sobre o que eles podem e o que eles devem fazer. Os EUA possuem um interesse vital em garantir que o euro sobreviva porque, para o dólar, é mais conveniente ter um único concorrente a ter de competir com 17 moedas nacionais europeias. No atual arranjo, os EUA precisam recorrer a apenas um Banco Central, o BCE, para fazer pressão política e impor seus interesses.
O socorro ao euro e a crescente concentração de poderes em Bruxelas estão gerando inquietações nos europeus. Será que as elites políticas não estão testando demais a disposição da população em aceitar ainda mais integração política?
Governos e estados têm a tendência de centralizar seus poderes. Na Europa, os poderes estão sendo transferidos para Bruxelas com o intuito de eliminar a concorrência entre os países. O sonho dos estatistas é um estado mundial que imponha impostos e regulamentações uniformes, e que retire totalmente dos cidadãos a capacidade de melhorar sua vida por meio de emigração. Os europeus já perceberam que, basicamente, a União Europeia nada mais é do que um enorme aparato de redistribuição. Isso gera discórdia e incita a inveja e o rancor entre os cidadãos de diferentes países.
O que podemos fazer quanto a isso?
Para a causa da liberdade, o melhor seria se a Europa se desintegrasse no maior número possível de micro-estados. Isso também vale para a Alemanha. Quanto menor a extensão espacial de um estado, mais fácil seria emigrar e, consequentemente, menos intrusivo e coercivo teria de ser o estado. Afinal, seria de seu total interesse fazer de tudo para que as pessoas produtivas se sentissem estimuladas a permanecer dentro de seu território.
Estados pequenos possuem vários concorrentes geograficamente próximos. Se um governo passar a tributar e a regulamentar mais do que seus concorrentes, a população emigrará, e o país sofrerá uma fuga de capital e mão-de-obra. O governo ficará sem recursos e será forçado a revogar suas políticas confiscatórias.
O senhor quer retornar ao "Kleinstaaterei", o sistema de mini-países que vigorou na Alemanha no século XIX?
Apenas veja a evolução econômica e cultural ocorrida naquela época. No século XIX, a área da qual a Alemanha hoje faz parte era a principal região da Europa. As grandes realizações culturais ocorreram em uma época em que não havia um estado grande e centralizado. Os pequenos territórios viviam em intensa concorrência entre si. Todos queriam ter as melhores bibliotecas, os melhores teatros, as melhores universidades. Essa região era significativamente mais avançada — tanto em termos culturais quanto intelectuais — do que a França, que, àquela época, já possuía um governo centralizado. À medida que toda a cultura foi centralizada em Paris, o resto do país caiu na obscuridade cultural.
Mas o livre comércio seria ameaçado pela secessão e por esse retorno a um arranjo de nações fragmentadas
Muito pelo contrário. Estados pequenos têm necessariamente de comercializar. Não há alternativas, pois seu mercado interno não é grande e nem suficientemente diversificado para que a população possa viver de maneira autônoma e independente. Se eles não praticarem um livre comércio, morrerão de fome em uma semana. É exatamente o mesmo fenômeno que ocorre com uma cidade pequena dentro de um país grande. Se ela se fechar completamente e não comercializar com as outras cidades, seus habitantes morrerão.
Quanto menor o país, maior será a pressão para que ele adote um genuíno livre comércio e maior será a oposição a medidas protecionistas. Toda e qualquer interferência governamental sobre o comércio exterior leva a um empobrecimento relativo, tanto no país quanto no exterior. Quanto menor um território e seu mercado interno, mais dramático será esse efeito. Se os EUA adotarem um protecionismo mais forte, o padrão de vida médio dos americanos cairá, mas ninguém passará fome. Já se uma pequena cidade, como Mônaco, fizesse o mesmo, haveria uma quase que imediata inanição generalizada.
Adicionalmente, estados pequenos e soberanos não podem permanentemente culpar forças externas quando algo vai mal em suas economias. Na União Europeia, Bruxelas é frequentemente culpada por todos os tipos de malefícios vivenciados nos países da UE. Já com estados pequenos e independentes, os governos teriam de aceitar a responsabilidade pelos problemas vivenciados em seus próprios territórios. Isso gera um efeito pacificador nas relações entre os países.
Mas se cada um destes pequenos estados tivesse sua própria moeda, isso acabaria com a integração dos mercados de capital.
Estados pequenos não podem se dar ao luxo de utilizar uma moeda própria porque isso elevaria enormemente os custos de transação. É como se você tivesse de trocar de moeda todas as vezes que fosse de uma cidade para outra dentro do mesmo país. Isso seria um custo de transação irracional. Logo, tais estados teriam de se esforçar, de forma natural, para adotar uma moeda em comum e que fosse independente de governos e fora da influência de políticos e burocratas. Há uma grande probabilidade de que eles iriam concordar em adotar como moeda uma commodity como o ouro ou a prata, cujo valor é determinado pelo mercado.
Em suma, a secessão também promoveria uma integração monetária e levaria à substituição do atual sistema monetário baseado em moedas fiduciárias nacionais — que flutuam entre si e se desvalorizam diariamente — por um padrão monetário baseado em uma commodity totalmente fora do controle dos governos. Assim, o mundo seria formado por pequenos governos liberais e seria economicamente integrado por meio do livre comércio e de uma moeda-commodity internacional. O Kleinstaaterei leva a mais mercado e a menos intervenção estatal no sistema monetário.
Mas se a Europa fosse uma coleção de pequenos estados, não seria correto dizer que, no cenário internacional, ela não teria nenhuma influência, ao menos em relação aos grandes estados?
Essa tese não se sustenta. Afinal, como é que Suíça, Liechtenstein, Mônaco e Cingapura conseguem estar economicamente no topo? A minha impressão é que estes países são mais ricos do que a Alemanha, e que os alemães eram ricos antes de embarcarem na aventura do euro. É imperativo nos livrarmos desta falsa e perigosa ideia de que o comércio e os negócios ocorrem entre estados. O comércio e os negócios ocorrem entre indivíduos e empresas que produzem em diversos pontos geográficos. Economias não consistem de estados concorrendo com outros estados, mas sim de indivíduos e empresas concorrendo com outros indivíduos e empresas.
Não é o tamanho de um estado o que determina sua prosperidade, mas sim a capacidade e o preparo de seus cidadãos.
Na próxima e última parte da entrevista, o professor Hoppe abordará a questão da ausência do estado e falará sobre as possibilidades do funcionamento de um arranjo anarcocapitalista.
Fonte:Mises
Sem a intervenção dos governos, na forma de programas de estímulos, e dos bancos centrais, na forma de injeções de liquidez, o mundo não estaria hoje mergulhado em uma profunda recessão, como nos anos 1930?
Há esse juízo falso de que os governos e os bancos centrais podem ajudar a economia com programas que a ajudam a se recuperar. Até mesmo na década de 1930, nos EUA, foram implantados vários programas de estímulos. Mas a Grande Depressão realmente só acabou após o fim da Segunda Guerra Mundial. Nos anos anteriores à guerra, a taxa de desemprego jamais ficou abaixo dos 15%. Os bancos estavam entesourando o dinheiro que lhes fora entregue pelo Banco Central em vez de emprestá-lo.
As circunstâncias atuais são similares. O dinheiro não está indo para o mercado de bens; por isso os preços mal estão subindo. Mas isso não significa que não esteja havendo inflação. Basta você olhar para as principais bolsas de valores do mundo e ver como elas estão se comportando; aí você vai identificar para onde exatamente está indo esse dinheiro criado pelos bancos centrais e entregue ao sistema bancário. A inflação está ocorrendo no mercado de ativos.
A bonança nos mercados de ações também é uma consequência das taxas de juros negativas que desestimulam o ato de poupar...
... e que colocam em risco nossa prosperidade. Uma economia só irá crescer de maneira saudável e duradoura se as pessoas estiveram poupando mais do que consumindo. É necessário poupar mais e consumir menos. Sem poupança, não há investimentos viáveis.
Por quê?
Vou dar um exemplo simples. Imagine Robinson Crusoé e Sexta-Feira em uma ilha deserta. Se Robinson pescar peixes e consumir somente alguns deles, mas não todos, ele poderá emprestar para Sexta-Feira os peixes que ele poupou. Sexta-Feira, então, poderá se alimentar destes peixes por alguns dias enquanto investe seu tempo na construção de uma rede de pesca para ele próprio. Com essa rede, Sexta-Feira poderá agora pegar um número tão grande de peixes, que ele não apenas será capaz de alimentar a si próprio como também poderá devolver a Robinson o mesmo número de peixes que este havia lhe dado. Mais ainda: Sexta-Feira, em princípio, torna-se capaz de quitar seu empréstimo junto a Robinson, mais juros, e ainda obter lucro na forma de peixes adicionais para si próprio.
Mas o que acontecerá se Robinson, em vez de poupar, simplesmente comer todos os peixes que pegou e, simultaneamente, der a Sexta-Feira certificados de papel que, em teoria, podem ser restituídos em peixes? Se Sexta-Feira decidir ir até Robinson para restituir seus certificados de papel em peixes, ele descobrirá que não há peixe nenhum com Robinson. Sendo assim, Sexta-Feira terá urgentemente de conseguir comida para si próprio e, consequentemente, não terá tempo para finalizar a construção da sua rede. A construção da rede será um projeto abandonado. O padrão de vida tanto de Sexta-Feira quanto de Crusoé estará agora menor.
Ou seja, todo este arranjo seria fisicamente impossível caso o empréstimo de Robinson para Sexta-Feira fosse apenas um pedaço de papel denominado em peixes, mas não lastreado por uma genuína poupança de peixes.
O que isso tem a ver com a nossa atual situação?
Algo similar ocorreu nas economias modernas na década de 2000. A expansão do crédito feita pelo sistema bancário em conjunto com seus respectivos bancos centrais nada mais foi do que um processo de criação de dinheiro do nada. Tal processo de criação de crédito reduziu artificialmente as taxas de juros e consequentemente estimulou vários tipos de investimentos, para os quais não havia uma correspondente poupança. As taxas de juros artificialmente baixas que vigoraram (e ainda vigoram) tanto na Europa quanto nos EUA não apenas não estimularam ninguém a poupar, como na realidade encorajaram todos a consumir desbragadamente — exatamente como os peixes de Crusoé não foram poupados, mas sim consumidos por ele.
O aumento do consumismo em conjunto com uma menor taxa de poupança leva a um aumento de preços e a um aumento do endividamento. Isso, por sua vez, faz com que os bancos passem a restringir mais o processo de criação de crédito. E essa maior restrição no crédito, em conjunto com o maior endividamento e os preços mais altos, gera um redução no consumo e no investimento. Os projetos que haviam sido iniciados e que até então pareciam lucrativos sofrem uma repentina queda na demanda (lembre-se de que não havia poupança para dar sustento a essa demanda futura). É aí que a economia entra em recessão.
Dado que nada mudou no comportamento dos bancos centrais desde então, podemos dizer que haverá uma nova crise?
Os bancos centrais estão tentando resolver a crise criando mais dinheiro e gerando mais crédito, ignorando completamente o fato de que a crise foi causada justamente por excesso de criação de dinheiro e de crédito. Logo, a próxima crise será ainda mais severa do que a última.
As autoridades monetárias, em especial o Fed, prometeram que irão enxugar a liquidez no momento certo, antes que a situação degringole.
Teoricamente, isso é possível. Os bancos centrais podem tentar reduzir a oferta monetária vendendo títulos do governo para o sistema bancário. O problema é que, na prática, isso até hoje nunca ocorreu. Mesmo porque tal medida vai contra o objetivo dos bancos centrais, que é o de manter as taxas de juros as mais baixas possíveis.
E produzir inflação?
Os bancos centrais de todo o mundo estão se esforçando ao máximo para manter o atual sistema monetário — que é todo baseado no dinheiro fiduciário — a todo o custo. Receio que o próximo passo será a eliminação do pouco que ainda resta da atual concorrência monetária global. Tal eliminação ocorrerá por meio de uma centralização do dinheiro e do sistema bancário. No final, é bem possível que surja algum tipo de banco central global, o qual irá manusear uma moeda única universal, resultante de uma fusão entre dólar, euro e iene. Livre da concorrência imposta por outras moedas, este banco central global teria então ainda mais espaço para inflacionar. A crise não apenas não acabaria, como ainda retornaria com força total em nível global.
Alguns economistas clamam por um padrão-ouro com o intuito de amarrar as mãos dos bancos centrais.
Governos e bancos centrais resistirão ferozmente a este arranjo. Na condição de monopolista estatal da distribuição do dinheiro, bancos centrais não têm absolutamente nenhum interesse em perder seu poder. Considero um retorno voluntário ao padrão-ouro algo totalmente irrealista.
E quanto à China? O país quer estabelecer o renminbi como a moeda de reserva internacional.
Para a China, seria uma medida esperta lastrear o renminbi em ouro, pois isso afetaria a dominância global do dólar. Com um renminbi lastreado em ouro, os dias de dominância econômica dos EUA e do dólar estariam contados. O Ocidente, portanto, irá fazer todo o possível para impedir que a China adote essa medida.
Na Europa, os governos e o Banco Central Europeu (BCE) ignoraram a lei e agiram acima da lei para socorrer o arranjo do euro. E não houve nenhum protesto público na Alemanha contra isso.
Os alemães aceitam passivamente receber ordens dos EUA sobre o que eles podem e o que eles devem fazer. Os EUA possuem um interesse vital em garantir que o euro sobreviva porque, para o dólar, é mais conveniente ter um único concorrente a ter de competir com 17 moedas nacionais europeias. No atual arranjo, os EUA precisam recorrer a apenas um Banco Central, o BCE, para fazer pressão política e impor seus interesses.
O socorro ao euro e a crescente concentração de poderes em Bruxelas estão gerando inquietações nos europeus. Será que as elites políticas não estão testando demais a disposição da população em aceitar ainda mais integração política?
Governos e estados têm a tendência de centralizar seus poderes. Na Europa, os poderes estão sendo transferidos para Bruxelas com o intuito de eliminar a concorrência entre os países. O sonho dos estatistas é um estado mundial que imponha impostos e regulamentações uniformes, e que retire totalmente dos cidadãos a capacidade de melhorar sua vida por meio de emigração. Os europeus já perceberam que, basicamente, a União Europeia nada mais é do que um enorme aparato de redistribuição. Isso gera discórdia e incita a inveja e o rancor entre os cidadãos de diferentes países.
O que podemos fazer quanto a isso?
Para a causa da liberdade, o melhor seria se a Europa se desintegrasse no maior número possível de micro-estados. Isso também vale para a Alemanha. Quanto menor a extensão espacial de um estado, mais fácil seria emigrar e, consequentemente, menos intrusivo e coercivo teria de ser o estado. Afinal, seria de seu total interesse fazer de tudo para que as pessoas produtivas se sentissem estimuladas a permanecer dentro de seu território.
Estados pequenos possuem vários concorrentes geograficamente próximos. Se um governo passar a tributar e a regulamentar mais do que seus concorrentes, a população emigrará, e o país sofrerá uma fuga de capital e mão-de-obra. O governo ficará sem recursos e será forçado a revogar suas políticas confiscatórias.
O senhor quer retornar ao "Kleinstaaterei", o sistema de mini-países que vigorou na Alemanha no século XIX?
Apenas veja a evolução econômica e cultural ocorrida naquela época. No século XIX, a área da qual a Alemanha hoje faz parte era a principal região da Europa. As grandes realizações culturais ocorreram em uma época em que não havia um estado grande e centralizado. Os pequenos territórios viviam em intensa concorrência entre si. Todos queriam ter as melhores bibliotecas, os melhores teatros, as melhores universidades. Essa região era significativamente mais avançada — tanto em termos culturais quanto intelectuais — do que a França, que, àquela época, já possuía um governo centralizado. À medida que toda a cultura foi centralizada em Paris, o resto do país caiu na obscuridade cultural.
Mas o livre comércio seria ameaçado pela secessão e por esse retorno a um arranjo de nações fragmentadas
Muito pelo contrário. Estados pequenos têm necessariamente de comercializar. Não há alternativas, pois seu mercado interno não é grande e nem suficientemente diversificado para que a população possa viver de maneira autônoma e independente. Se eles não praticarem um livre comércio, morrerão de fome em uma semana. É exatamente o mesmo fenômeno que ocorre com uma cidade pequena dentro de um país grande. Se ela se fechar completamente e não comercializar com as outras cidades, seus habitantes morrerão.
Quanto menor o país, maior será a pressão para que ele adote um genuíno livre comércio e maior será a oposição a medidas protecionistas. Toda e qualquer interferência governamental sobre o comércio exterior leva a um empobrecimento relativo, tanto no país quanto no exterior. Quanto menor um território e seu mercado interno, mais dramático será esse efeito. Se os EUA adotarem um protecionismo mais forte, o padrão de vida médio dos americanos cairá, mas ninguém passará fome. Já se uma pequena cidade, como Mônaco, fizesse o mesmo, haveria uma quase que imediata inanição generalizada.
Adicionalmente, estados pequenos e soberanos não podem permanentemente culpar forças externas quando algo vai mal em suas economias. Na União Europeia, Bruxelas é frequentemente culpada por todos os tipos de malefícios vivenciados nos países da UE. Já com estados pequenos e independentes, os governos teriam de aceitar a responsabilidade pelos problemas vivenciados em seus próprios territórios. Isso gera um efeito pacificador nas relações entre os países.
Mas se cada um destes pequenos estados tivesse sua própria moeda, isso acabaria com a integração dos mercados de capital.
Estados pequenos não podem se dar ao luxo de utilizar uma moeda própria porque isso elevaria enormemente os custos de transação. É como se você tivesse de trocar de moeda todas as vezes que fosse de uma cidade para outra dentro do mesmo país. Isso seria um custo de transação irracional. Logo, tais estados teriam de se esforçar, de forma natural, para adotar uma moeda em comum e que fosse independente de governos e fora da influência de políticos e burocratas. Há uma grande probabilidade de que eles iriam concordar em adotar como moeda uma commodity como o ouro ou a prata, cujo valor é determinado pelo mercado.
Em suma, a secessão também promoveria uma integração monetária e levaria à substituição do atual sistema monetário baseado em moedas fiduciárias nacionais — que flutuam entre si e se desvalorizam diariamente — por um padrão monetário baseado em uma commodity totalmente fora do controle dos governos. Assim, o mundo seria formado por pequenos governos liberais e seria economicamente integrado por meio do livre comércio e de uma moeda-commodity internacional. O Kleinstaaterei leva a mais mercado e a menos intervenção estatal no sistema monetário.
Mas se a Europa fosse uma coleção de pequenos estados, não seria correto dizer que, no cenário internacional, ela não teria nenhuma influência, ao menos em relação aos grandes estados?
Essa tese não se sustenta. Afinal, como é que Suíça, Liechtenstein, Mônaco e Cingapura conseguem estar economicamente no topo? A minha impressão é que estes países são mais ricos do que a Alemanha, e que os alemães eram ricos antes de embarcarem na aventura do euro. É imperativo nos livrarmos desta falsa e perigosa ideia de que o comércio e os negócios ocorrem entre estados. O comércio e os negócios ocorrem entre indivíduos e empresas que produzem em diversos pontos geográficos. Economias não consistem de estados concorrendo com outros estados, mas sim de indivíduos e empresas concorrendo com outros indivíduos e empresas.
Não é o tamanho de um estado o que determina sua prosperidade, mas sim a capacidade e o preparo de seus cidadãos.
Na próxima e última parte da entrevista, o professor Hoppe abordará a questão da ausência do estado e falará sobre as possibilidades do funcionamento de um arranjo anarcocapitalista.
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