Esqueça o amor.
A mística em torno do sexo é inegavelmente um dos assuntos favoritos
de boa parte dos artistas, seja no cinema, na literatura, na pintura ou
em qualquer outro meio. Afinal, até hoje sexo é tabu, mas ao mesmo tempo
é inevitavelmente corriqueiro.
Com este primeiro volume de “Ninfomaníaca” (“Nymphomaniac”), o
diretor e roteirista Lars von Trier joga para o ar as preocupações que
muitas produções tem e cumpre sua promessa, trabalhando sexo explícito
com um elenco estrelas hollywoodianas.
O resultado é surpreendemente bom, mas provavelmente não é (apenas) pelo motivo que você deve estar pensando.
Um aviso importante: Este é um filme com censura 18 anos. Seu
tema principal é o sexo, que aparece explicitamente em cena. Assim,
este texto também vai tocar em alguns assuntos adultos, e ainda que as
imagens abaixo não sejam explícitas, elas tem conotação sexual.
Recomendo que não continue lendo se for menor de 18 anos ou caso seja
facilmente ofendido(a) por assuntos relativos a sexo.
A obra já tem dado pano pra manga há tempos. Lars von Trier
surpreendeu o público afirmando que filmaria um pornô, e o filme já
coletou uma série de relatos que parecem piada, como o diretor ter pedido a Shia LaBeouf para que enviasse uma foto de seu pênis antes que aceitasse sua participação.
Com o desenvolvimento do filme, não pouparam esforços na divulgação,
incluindo cartazes com o elenco fazendo expressões de orgasmo, ou mesmo o
título que é grafado de uma maneira alternativa, um tanto sugestiva:
Não ajuda o histórico do próprio diretor, que além de ser persona non grata em Cannes, é famoso por suas obras polêmicas, tanto em assuntos quanto em execução.
“Ninfomaníaca” trata da história de Joe (Charlotte Gainsbourg), uma
mulher de meia-idade auto-diagnosticada como ninfomaníaca. Encontrada
ferida em um beco e acolhida pelo pacífico Seligman (Stellan Skarsgård),
Joe passa a lhe contar a história de sua vida e de sua ninfomania,
tentando provar que é uma pessoa ruim por seu comportamento devasso. A
história começa em sua infância (Maja Arsovic / Ananya Berg) e prossegue
por sua juventude e vida adulta (Stacy Martin), passando por suas
principais experiências sexuais e todos os inúmeros encontros que a
trouxeram até onde está hoje.
Se a sinopse ou a temática te deixaram com a expectativa de um filme
pornô, vá com calma. Esqueça a ideia de ter uma trilha sonora ruim,
ângulos de câmera forçados, atuação fraca ou corpos suados se
esfregando. Não, peraí – pode esperar esse último item, sim.
Lars von Trier conseguiu algo inesperado – e já digo isso logo de
cara para que não haja dúvida: ele conseguiu fazer um excelente filme
com base em sexo.
Fiel à fórmula, é inegável que von Trier bebeu na fonte do pornô: o
tema de “confissões” ou “memórias” sexuais é recorrente no universo
erótico, e dita a base do filme, ainda que não com o mesmo tom de
proibição e censura visto geralmente. Conforme narra para Seligman seus
segredos, Joe admite mais de uma vez a intimidade dessas informações, e
nós, como público, fazemos parte desse segredo. Os amantes de Joe e
outros personagens-chave de sua história depravada ganham nomes
definidos apenas por uma inicial, ao mesmo tempo que cada cena de sexo
ganha detalhes e uma intimidade quase proibitiva.
Na verdade, mais do que a própria história, “Ninfomaníaca” tem como
força a montagem. Individualmente, as histórias de Joe seriam
interessantes, mas é pela combinação certa de elementos, narração e
apresentação que se atinge a melhor experiência.
A narrativa da protagonista não é isenta. Mais do que comentar sobre o
que a excitava em cada um dos homens ou dos encontros – aqui, a
subjetividade é a chave para tornar as cenas mais pessoais e intensas –
ela vê a própria história com olhos pessimistas, julgando a si mesma.
Seligman, por outro lado, prefere vê-la de modo neutro ou positivo,
evitando o pessimismo da protagonista e colocando o próprio público em
uma situação de questionamento do que entendemos como “bom” e “ruim”
quando o assunto é sexo.
Na verdade, em sua essência, “Ninfomaníaca” não é necessariamente uma
história sobre sexo. O sexo aqui é um meio, mais do que um fim, e ainda
que Joe prefira mostrar uma fixação e ver seu comportamento como
repreensível e obsessivo, conforme conta a história, com a análise de
Seligman, vemos que a conversa vai além. Por trás de toda a roupagem
erótico-pornográfica, há uma discussão sobre a vida, sociedade,
filosofia e muitos outros assuntos. A ninfomania de Joe é analisada por
associações psicológicas, mas além disso as conversas passam por
religião, música clássica, matemática, pescaria e vários outros campos
completamente inesperados. (Vale observar, essa regra também funciona
para a trilha sonora, que tem a mesma variedade, combinando inspirações
clássicas com uma faixa de rock pesado que abre e fecha o filme,
aparentemente sem qualquer nexo, mas fazendo sentido pela soma total dos
elementos.)
A produção não se alonga em psicologia “de consultório”, o que é um
ponto positivo. Lógico, o filme aproveita bem a relação de Joe com os
pais, com sua mãe distante (Connie Nielsen) e o pai sempre presente
(Christian Slater), e muito dessa influência adiciona à história, mas a
discussão é muito mais lógica e moral. Não se falam de distúrbios,
doenças e traumas, mas de “certo e errado”, “bom e ruim”, pecado,
lições, e lógica. E não, ainda que o conceito de pecado entre em jogo,
nenhum dos personagens é religioso, então o assunto mal entra na equação
do filme de maneira direta.
Por se tratar de um relato, a obra não precisa de linearidade. A
própria Joe tem dificuldade de saber por onde começar, e o filme vai e
volta em pontos diversos de sua vida. Isso é ideal – alguns momentos de
sua vida adulta só fazem sentido quando conta suas aventuras da
infância, ou coisas que aprendera com seu pai, de modo que o vai-e-volta
é pertinente e permite explicitar momentos mais específicos.
A presença de Seligman não é gratuita. Mais do que um mero
espectador, ele colabora com a história, traçando paralelos entre os
acontecimentos da vida de Joe com suas próprias experiências, e com seu
vasto conhecimento de assuntos diversos. Os universos dos personagens se
misturam, e em meio à narração temos cortes súbitos para imagens,
diagramas e explicações que, por absurdas que possam ser, revelam muitos
detalhes da trama e silenciosamente montam as cenas. Essas interrupções
passam a ser esperadas, alimentando a imaginação do público e
auxiliando a maneira que a história é contada.
Seja uma fita com uma gravação inacabada ou diagramas e uma
dissertação sobre os números da sequência de Fibonacci, pode esperar que
a coleção de referências, no fim das contas, se torne algo muito maior
do que o todo, e olhos atentos irão encontrar várias outras pequenas
referências e símbolos que nenhum dos personagens menciona, mas estão
lá.
Nessa linha, vale ressaltar que o fantástico faz parte o tempo todo
da narração. Há, em parte, o próprio enredo com muita simbologia e fatos
convenientes – a própria Joe mais de uma vez abre a discussão sobre a
total veracidade do conto -, além do clima de conto erótico. Mais do que
isso, as análises e os assuntos paralelos muitas vezes culminam em
cenas imaginárias que oscilam do bizarro ao impagávelmente cômico,
implicitamente brotando da imaginação fértil de Seligman.
A história completa é dividida em dois filmes, somando 8 capítulos
(neste primeiro, vamos até o final do 5). Cada capítulo é uma história
que colabora para um todo, mas por serem contados separadamente, ganham
elementos próprios de montagem. No geral, isso é feito tematicamente – o
primeiro capítulo trabalha uma série de metáforas e paralelos de
pescaria, e outro mais à frente fala de música e polifonia – ou mesmo
graficamente – um capítulo, em especial, é inteiramente em
preto-e-branco.
Em termos de enredo isso também acontece. Ainda que dramático e
tenso, o filme tem alguns temas humorísticos em segundo plano quase
constantemente, geralmente graças aos paralelos gráficos. Porém, vale
destacar um segmento em especial: em certo ponto, Joe tem que lidar com a
esposa de um de seus casos (Uma Thurman). A cena tem um humor
situacional absurdo, que começa quebrando todas zonas de conforto,
primeiro dos personagens e depois do público. Temos uma sequência de
diálogos repletos de uma ironia mordaz, da qual é difícil não rir, mas
ao mesmo tempo temos plena consciência que não gostaríamos de estar no
lugar de nenhum dos presentes.
Agora sejamos sinceros – imagino que boa parte de vocês está aqui
pelo sexo. Então vamos falar disso: a própria Joe parece seguir a
filosofia que o slogan do filme prega (“Esqueça o amor.”),
sendo que ainda que o filme discuta relacionamentos, seja com os casos
sem nome ou com seu primeiro amor Jerôme (Shia LaBeouf), os anos lhe
deixaram cética demais para sentimentos do tipo.
Em meio à narração, as referências intelectuais se misturam com a
perversão: Dois dos números de Fibonacci surgem no número de estocadas
que Joe tomou em sua primeira transa (3 na frente, 5 atrás); em outro
momento sua vagina é comparada a uma isca, e sua busca por homens é o
método do pescador procurando presas; mais tarde, um trio de amantes –
entre tantos – vira uma composição melódica complexa.
“Ninfomaníaca” não tem pudores para mostrar sexo. Você verá
penetrações, sexo oral (praticado por ambos gêneros) e alguns ângulos de
câmera consideravelmente ginecológicos. Nem sempre é agradável, mas
ninguém falou que seria – os primeiros relatos de Joe tratam de
masturbação infantil, com pequenos jogos quase eróticos que ganham tons
pervertidos por sua narração. Ver as atrizes-mirim deslizando pelo chão
de um banheiro é sem dúvida perturbador, e a primeira experiência sexual
de Joe, aos 15 anos, também não é sem certo estranhamento, tanto pelo
sexo ruim quanto pelo fato da personagem ser menor de idade. Aqui só
aumenta a ideia de que vemos algo proibido.
A estrela das cenas picantes é Stacy Martin, com uma infinidade de
parceiros, em cenas de tamanhos variados e em todas as posições
possíveis. Vale lembrar, o sexo que vemos em cena é de mentira, ao mesmo
tempo que não. Para evitar atrapalhar a carreira de qualquer um dos
envolvidos, as cenas foram feitas com sexo simulado, combinado com computação gráfica com dublês de corpo fazendo sexo real.
Ou seja, nada ali é de mentira, e sim, você vai ver muita nudez “de
verdade” também. É claro, como as aventuras de Joe são heterossexuais,
não se assuste se tiver que encarar vários pênis. Aliás, uma montagem, a
certa altura, mostra dezenas de membros em close em alguns segundos, o
que tem um efeito no mínimo impactante com a tela do cinema.
É importante ressaltar que o que temos agora no cinema não é a pornografia máxima da obra. A
produção lançou uma primeira versão cortando cenas de closes de órgãos
genitais, o que reduziu as 5 horas de meia dos dois volumes do filme
para 4 horas. Então, se você está aqui só pela sacanagem, espere o
lançamento em Blu-Ray ou torça pelo lançamento completo nos cinemas do
Brasil.
No fim das contas, a obra de Lars von Trier sempre divide opiniões –
historicamente, a crítica dificilmente tem um consenso, e mesmo entre o
público há muita variação – então é difícil prever quem irá gostar de
“Ninfomaníaca”. Deixo minha recomendação a todos que gostam de uma boa
história, contada de um jeito interessante. Ou para aqueles que queiram
uma desculpa boa para ver uma sacanagenzinha sem serem julgados.
Fonte:POP
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