Quase
todas as pessoas e os historiadores não são exceção -são tentadas a crer
que o progresso econômico e cultural é um fenômeno contínuo e
ininterrupto. A crença é a de que, a
cada século, as pessoas estão em melhor situação do que estavam no século
anterior. Essa confortável presunção
teve de ser abandonada bem precocemente quando, após o colapso do Império
Romano, iniciou-se a Era das Trevas.
Sempre
se afirmava que, após o "renascimento" do século XI, o progresso na Europa
Ocidental havia sido bastante linear e contínuo desde aquele ponto até os dias
atuais. Entretanto, foram necessários os
heróicos esforços empreendidos ao longo de várias décadas de
historiadores econômicos como os professores Armando Sapori e Robert Sabatino
Lopez para finalmente convencer os historiadores de que houve um grave declínio
secular na maior parte da Europa Ocidental no período que vai desde
aproximadamente 1300 até meados do século XV; um período que pode ser chamado
de Baixa Idade Média ou a era inicial do Renascimento.
Esse
declínio secular, incorretamente intitulado como uma mera "depressão", permeou
quase toda a Europa Ocidental, com a exceção de algumas poucas cidades-estados
italianas.
O
declínio econômico foi marcado por uma severa queda na população. Desde o século XI, o crescimento econômico e
a prosperidade haviam impulsionado as cifras populacionais. A população total da Europa Ocidental,
estimada em 24 milhões no ano 1.000 d.C., havia saltado para 54 milhões já no
ano 1340. No entanto, em pouco mais de
um século, de 1340 a 1450, a população europeia ocidental foi reduzida de 54
milhões para 37 milhões, uma queda de 31% em apenas um século.
A
batalha para se estabelecer como verdadeira a ocorrência do grande declínio foi
bem sucedida; no entanto, foi muito pouco efetiva para estabelecer a causa ou
as causas desse desastre. O enfoque dado
à devastação causada pelos surtos da Peste Negra em meados do
século XIV é parcialmente correto, porém superficial, pois esses surtos foram
eles próprios causados por um colapso econômico e por uma consequente queda no
padrão de vida que haviam começado ainda no início daquele século.
As
causas da grande depressão da Europa Ocidental podem ser resumidas em uma
rígida, simples e completa frase: a recém-imposta soberania do estado. Durante a síntese medieval da Alta Idade Média
(séculos XI, XII e XIII), havia um equilíbrio de poder entre Igreja e estado,
com a Igreja sendo ligeiramente mais poderosa.
No século XIV, esse equilíbrio foi quebrado, e o conceito de
estado-nação tornou-se predominante. O
poder da Igreja foi quebrado e os estados começaram a impor tributos e
regulamentações, a controlar as pessoas e a provocar devastações por meio de
uma guerra virtualmente contínua, que durou mais de um século (a Guerra dos Cem Anos,
de 1337 a 1453).[1]
O
primeiro e decisivamente mais importante passo rumo à ascensão do poder do
estado em detrimento da economia, a qual foi sendo continuamente enfraquecida,
foi a destruição das feiras
de Champagne. Durante a Alta Idade
Média, as feiras de Champagne eram o principal centro do comércio
internacional, além de ser o centro de distribuição de todo o comércio local e
regional. Essas feiras haviam sido
cuidadosamente criadas, cultivadas e fomentadas para serem zonas livres, não
tributadas e não reguladas por reis ou aristocratas franceses, ao mesmo tempo
em que a justiça era rápida e eficientemente distribuída por tribunais privados
ou tribunais mercantis, que operavam em regime de livre concorrência. As feiras de Champagne atingiram seu apogeu
durante o século XIII, e se tornaram o centro do comércio terrestre das
mercadorias que eram transportadas ao longo dos Alpes no norte da Itália,
vindas de lugares longínquos.
E
então, no início do século XIV, Filipe IV, o Belo,
rei da França (1285—1314), deu início ao processo de tributação, espoliação e,
efetivamente, de destruição das vitalmente importantes feiras de
Champagne. Para financiar suas perpétuas
guerras dinásticas, Filipe impôs às feiras de Champagne um rígido imposto sobre
vendas. Ele também destruiu o capital e
as finanças domésticas ao impor repetidos tributos confiscatórios sobre grupos
ou organizações que lidavam com dinheiro.
Em 1308, ele destruiu a rica Ordem dos Templários,
confiscando seus fundos e desviando-os para o tesouro real.
Em
seguida, Filipe impôs em sequência uma série de tributos e confiscos severos e
debilitantes sobre os judeus e os italianos do norte da Itália (da Lombardia),
que eram os grupos mais importantes das feiras: em 1306, 1311, 1315, 1320 e
1321. Ademais, em guerra com os
flamengos (belgas da região de Flandres), Filipe aboliu o tradicional e antigo
costume de todos os mercadores serem bem-vindos às feiras, decretando a
exclusão dos flamengos. O resultado dessas
medidas foi um rápido e permanente declínio das feiras de Champagne e da
tradicional rota do comércio ao longo dos Alpes. Desesperadoramente, as cidades-estados da
Itália começaram a reconstituir as rotas comerciais e a enviar embarcações para
Bruges, passando pelo Estreito de Gibraltar.
Essa rota começou a prosperar mesmo com a região de Flandres em
declínio.
Foi
algo particularmente fatídico que Filipe, o Belo, tenha inaugurado o sistema
de tributação regular na França. Antes
disso, não havia impostos regulares. Na
era medieval, embora o rei supostamente fosse o todo-poderoso dentro de sua
esfera de domínio, essa esfera era restringida pela santidade da propriedade
privada. O rei supostamente deveria ser
um braço armado da lei e um mantenedor da ordem, e suas receitas supostamente
deveriam advir dos aluguéis cobrados sobre as terras reais, e das taxas e pedágios
feudais. Não havia nada que pudesse ser
classificado de tributação regular. Em
uma emergência, tal como uma invasão ou o início de uma cruzada, o príncipe,
além de invocar o dever feudal de seus vassalos de lutar em nome dele, poderia
também pedir-lhes um subsídio. Mas tal
ajuda seria requisitada ao invés de ordenada, e teria sua duração limitada ao
período da emergência.
As
guerras perpétuas do século XIV e da primeira metade do século XV começaram na
década de 1290, quando Filipe, o Belo, tirando proveito da guerra conduzida
pelo rei Eduardo
I de Inglaterra contra a Escócia e o País de Gales, apossou-se da província
da Gasconha, tomando-a da Inglaterra. Isso
deu origem a um contínuo embate militar envolvendo, de um lado, Inglaterra e
Flandres, e do outro, a França, fazendo com que tanto a coroa inglesa quanto a
francesa ficassem desesperadas por novos fundos para financiar essa aventura
militar.
Os
mercadores e capitalistas das feiras de Champagne podiam ter dinheiro, mas o
maior e mais tentador alvo para a espoliação real era a Igreja Católica. Ambos os monarcas da Inglaterra e da França
começaram a tributar a Igreja, o que os colocou em rota de colisão com o
papa. O papa Bonifácio VIII
(1294—1303) resistiu de maneira resoluta a essa nova forma de pilhagem, e
proibiu os monarcas de tributarem a Igreja.
O rei Eduardo reagiu a esta resistência papal negando à Igreja acesso à
justiça dos tribunais reais, ao passo que Filipe foi mais combativo: proibiu a
Igreja de transferir suas receitas da França para Roma.
Bonifácio
foi forçado a recuar e a permitir a tributação, mas sua bula Unam Sanctam (1302) insistiu em afirmar
que toda autoridade temporal deve ser subordinada à espiritual. Isso enfureceu Filipe, que audaciosamente sequestrou
o papa na Itália e fez todos os preparativos para julgá-lo por heresia, um
julgamento que só não se consumou porque Bonifácio, já velho, morreu
antes. Após essa ocorrência, Filipe, o
Belo, tomou para si próprio o papado, e mudou a sede da Igreja Católica Romana
de Roma para Avignon, onde ele próprio passou a se designar papa. Durante praticamente todo o século XIV, o
papa, em seu "cativeiro babilônico", foi apenas um instrumento abjeto do rei
francês; o papa iria retornar a Roma somente no início do século XV.
Desta
forma, a até então poderosa Igreja Católica, poder dominante e autoridade
espiritual durante toda a Alta Idade Média, havia sido apequenada, reduzida e
transformada praticamente em uma vassala do saqueador real da França.
O
declínio da autoridade da Igreja, portanto, deu-se paralela e simultaneamente à
ascensão do poder do estado absoluto.
Não contente em confiscar, espoliar, tributar e destruir as feiras de
Champagne, além de colocar a Igreja Católica sob seu tacão, Filipe, o Belo,
também decidiu obter receitas adicionais para suas guerras eternas por meio da
adulteração da cunhagem de moedas[2],
o que gerou uma inflação secular.
As
guerras do século XIV não geraram um grande volume de devastação direta: os exércitos eram pequenos e as
hostilidades, intermitentes. A principal
devastação veio com os pesados impostos, com a inflação monetária e com o grande
endividamento do estado para financiar as perpétuas aventuras reais. O enorme aumento da tributação foi o aspecto
mais debilitante das guerras. As
despesas da guerra: recrutamento de um exército de tamanho moderado, pagamento
dos salários dos soldados, suprimentos e fortificações tudo isso custou de
duas a quatro vezes os gastos habituais da Coroa. Acrescente a isso os altos custos da
determinação, fiscalização e imposição/aplicação dos tributos, bem como os
custos dos empréstimos tomados e o fardo economicamente debilitante gerado
pela tributação para financiar a guerra se torna demasiado claro.
Os
novos impostos estavam por todos os lados.
Vimos os graves efeitos dos impostos sobre a Igreja; em uma grande
fazenda monástica, os impostos frequentemente absorviam mais de 40% dos lucros
líquidos dessa fazenda. Um imposto per
capita uniforme, de um xelim, criado pela Coroa Inglesa em 1380, infligiu
grandes dificuldades e privações sobre camponeses e artesãos. O tributo equivalia a um mês de salário dos
trabalhadores agrícolas e a uma semana de salário dos trabalhadores urbanos. Ademais, dado que muitos trabalhadores e
camponeses pobres eram pagos em bens ao invés de em dinheiro, acumular e
ajuntar o dinheiro necessário para pagar o tributo era particularmente difícil.
Foram
criados outros novos tributos, como impostos ad valorem (de acordo com o valor) sobre todas as transações;
impostos sobre a venda de bebidas no atacado e no varejo; e impostos sobre o
sal e a lã. Para combater a sonegação, os
governos estabeleceram mercados monopolistas para a venda de sal na França e
"pontos específicos" para o comércio de lã na Inglaterra. Os impostos restringiram a oferta e elevaram
os preços, paralisando o crucial comércio de lãs na Inglaterra. A produção e o comércio foram adicionalmente
afetados por volumosos confiscos para fins belicistas impetrados pelos reis, o
que provocou uma drástica queda da renda e da riqueza, bem como inúmeras
falências entre os produtores.
Em
suma, os consumidores sofriam com os preços artificialmente altos e os
produtores sofriam com os retornos cada vez menores, sendo que esse diferencial
era confiscado da economia pelo rei. Os
empréstimos contraídos pelos governos serviram para piorar ainda mais a
situação, dado que os reis deram seguidos calotes nas dívidas, o que gerou
grandes prejuízos e falências entre os banqueiros privados que foram tolos o
bastante para emprestar para o governo.
O resultado foi uma grande depressão econômica.
Criados
como uma resposta para a "emergência" gerada por épocas de guerra, os novos
impostos acabaram se tornando permanentes: não somente porque as operações
militares duraram mais de um século, mas porque o estado, sempre à procura de
uma desculpa para aumentar suas receitas e seu poder, aproveitou a oportunidade
de ouro para converter esses impostos criados especificamente para épocas de
guerra em uma parte permanente da cultura nacional.
De
meados do século XIV até o seu fim, a Europa foi assolada pela devastadora
pandemia da Peste Negra a peste bubônica, a qual, no curto período de
1348—1350, dizimou completamente um terço da população. A Peste Negra foi em grande medida uma
consequência da redução do padrão de vida das pessoas, causada pela grande
depressão e pela resultante perda de resistência física e imunológica à
doença. A praga continuou ocorrendo em
surtos periódicos embora não em forma tão virulenta quanto a primeira
durante todas as décadas do século.
Tão
grande é o poder recuperativo da raça humana, que essa enorme tragédia não
gerou duradouros e catastróficos efeitos sociais ou psicológicos entre a
população europeia. De certo modo, o
mais longevo efeito danoso gerado pela Peste Negra foi a reação da Coroa
Inglesa, que impôs sobre a sociedade um permanente controle de salários e um
racionamento compulsório da mão-de-obra.
O súbito declínio da população e a consequente duplicação do valor dos
salários foram combatidos pelo governo por meio de uma severa imposição de um
teto salarial determinado pelo Decreto de 1349 e pelo Estatuto dos
Trabalhadores de 1351. O teto salarial
foi criado a pedido da classe patronal: grandes, médios e pequenos
proprietários de terra, bem como artesãos mestres, os primeiros particularmente
alarmados com o aumento dos salários agrícolas.
O
decreto e o estatuto desafiaram as leis econômicas ao tentar fixar um teto
salarial no mesmo nível dos salários vigentes antes da pandemia. O inevitável resultado, entretanto, foi uma
grave escassez de mão-de-obra, uma vez que, ao nível salarial determinado pelo
estatuto, a demanda por mão-de-obra era amplamente maior do que a agora escassa
oferta.
Toda
intervenção governamental cria novos problemas enquanto tenta infrutiferamente
resolver os antigos. Consequentemente, o
governo se vê confrontado por duas escolhas: criar novas intervenções para
solucionar os novos e inexplicáveis problemas, ou revogar a intervenção
original. O instinto do governo,
obviamente, é o de maximizar sua riqueza e poder criando novas intervenções. E foi isso o que fez o Estatuto dos
Trabalhadores inglês: impôs trabalho forçado, ao nível salarial vigente antes
da Peste, a todos os homens da Inglaterra que tivessem menos de 60 anos de
idade; restringiu a mobilidade da mão-de-obra, declarando que o senhor de um
dado território tinha o direito prioritário sobre a força de trabalho de um
homem; e tornou crime um empregador dar emprego para um trabalhador que havia
deixado seu ex-patrão. Desta maneira, o
governo inglês impôs o racionamento da mão-de-obra para tentar manter os trabalhadores
nas mesmas profissões que ocupavam antes da pandemia, e recebendo os mesmos
salários daquela época.
Esse
racionamento compulsório da mão-de-obra foi um ataque à inclinação natural do
homem de procurar empregos que pagam salários mais altos. Assim, o inevitável surgimento de um mercado
negro para a mão-de-obra dificultou a aplicação e a imposição dos
estatutos. A desesperada Coroa Inglesa
tentou mais uma vez, com o Estatuto de Cambridge de 1388, tornar o racionamento
ainda mais rigoroso. Todo e qualquer
tipo de mobilidade da mão-de-obra foi proibida.
Trabalhadores só poderiam transitar de um emprego para outro com uma
permissão escrita das autoridades judiciárias locais. O trabalho infantil compulsório foi imposto
na agricultura.
Mas
esse cartel compulsório dos compradores de mão-de-obra não se sustentava. Havia evasões contínuas, principalmente dos
grandes empregadores, os quais estavam particularmente ávidos por mão-de-obra
de qualidade e podiam pagar salários maiores para elas. A desajeitada e lerda máquina judiciária
inglesa era totalmente ineficaz em impor e fazer cumprir a legislação, embora
as guildas urbanas monopolísticas (monopólios protegidos e estimulados pelo
governo) conseguissem manter parcialmente os controles salariais nas cidades.
Este artigo foi extraído do livro An
Austrian Perspective on the History of Economic Thought, vol. 1, Economic
Thought Before Adam Smith. Fonte:Mises
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