O que é o "Precariado", nova classe social? Em que ela difere do
proletariado histórico? Livro de Guy Standing lança provocações
instigantes
–
“Somos todos precários”, afirma Guy Standing ao final de seu estudo
sobre essa nova realidade do trabalho, nascida do cruzamento do
“proletariado” com o “precário”. Vivemos em um capitalismo do desejo, da
informação, das marcas, do projeto, do dinheiro e das finanças
virtuais. Neste capitalismo de projeto, o precariado é aquela pessoa
aturdida, que gastou suas economias em um perfume propagandeado, mas que
não obteve o sucesso social. Ao contrário do excluído tradicional, ele é
convidado para a festa – mas batem-lhe a porta à cara. A condição
essencial do precariado é a frustração. Ela pode transfornar-se em
vontade política de mudança? Não é fácil. Hoje, o precariado opta mais
pela teatralidade das protestos mais numerosos que as manifestações
tradicionais esquerda ou direita – mas capazes, no máximo, de
constranger o Estado, não de transformá-lo.
Já faz trinta anos que a direita expôs sua receita e a repetiu até
convertê-la em um novo senso comum: desmontar o Estado, privatizar,
desideologizar parlamentos e partidos, controlar a mídia, financiar
fundações e universidades, combater os “excessos de democracia”,
submeter o Sul por meio da dívida, aumentar a exploração da natureza e
financiar a economia através do déficit público e eliminação dos limites
à expansão financeira. A esquerda social-democrata abraçou o
neoliberalismo sob a égide da “terceira via”. A esquerda não
social-democrata se social-democratizou e começou a entoar o canto
repetido do retorno ao Estado social perdido (que ontem criticava). A
direita passou três décadas fazendo seus deveres. Já a esquerda, não. A
precarização generalizada do trabalho não esteve ausente nessas décadas.
Na verdade, ninguém moveu um dedo para evitar que isso acontecesse.
O precariado, diz Standing, é uma nova classe social em formação que,
embora ainda não seja uma “classe para si” (quer dizer, que se
reconhece e luta por seus próprios interesses), tem já uma série de
características específicas que nos convidam a entendê-la como uma
entidade que promete ação coletiva própria. O precariado vive uma
flexibilidade laboral nem sempre desejada e uma constante sensação de
levar uma vida de má qualidade. Não equivale nem aos proletários
tradicionais nem às classes médias superexploradas. Tampouco uma
"subclasse" ou "a camada inferior da classe trabalhadora". Quer boa
parte das garantias dos trabalhadores tradicionais, mas não uma vida
profissional como a de seus pais ou avós. Suas incertezas e inseguranças
são peculiares. Consumistas e carentes de memória, seus membros parecem
elegantes aos olhos dos mais velhos – que eles enxergam como
dinossauros privilegiados.
Embora os sindicatos não o compreendam direito, o precariado existe e
tem suas próprias características, ainda que seja apenas porque lê sua
realidade de forma diferente. São pessoas bem-formadas, às quais se
prometeu (na escola, na faculdade, na televisão, na publicidade, no
exemplo de quem teve sorte) um mundo divertido, confortável e criativo –
que nunca chega. São aqueles que viram a escada pela qual subiam ser
chutada pelos que vieram antes deles. Mas que ainda não parecem ter
pressa (como teve a classe operária, desde o final do século XIX). São
pessoas com certa rede familiar (que se sustenta cada vez mais nos avós,
mas que também está se precarizando), com uma formação que lhes permite
sonhar com um futuro profissional brilhante (ao contrário do ocorreria
com um proletário tradicional, condenado a um realismo inclemente). São
mulheres e jovens (em sociedades onde as mulheres estão lutando para
conseguir um espaço de igualdade e diferença, e onde há um aumento da
esperança de vida que prolonga a juventude até os quarenta).
São
receptivos às mensagens de rebeldia e inconformismo herdados de 68. São
urbanos (resultado do êxodo do campo para a cidade a partir dos anos 60
do século XX) e, portanto, sujeitos à condição paradoxal de estar
profundamente conectados às redes, ao mesmo tempo em que estão
desconectados do mundo real.
O precariado diferencia-se do assalariado “com um posto de trabalho
relativamente duradouro e estável, com jornadas de fixas e caminhos de
progresso bastante claros, com sindicatos e acordos coletivos, com
funções cujos nomes seus pais compreendiam”. A pergunta quase óbvia é:
mas o precariado não é na verdade a mesma classe proletária fustigada de
sempre? Standing insiste em que são realidades diferentes. Basicamente,
o que ele está dizendo é que o mundo do Estado social está acabando. A
diferença entre o precariado e outras formas de trabalho subalterno não
está tanto em sua “decadência” profissional, mas na leitura que
construiram sobre o lugar que mereceriam ocupar. O precariado conseguiu
fazer, no oásis social-democrata, os deveres de casa necessários para
estar em outro lugar – por exemplo, formando-se, manejando tecnologias,
aprendendo idiomas, conhecendo o mundo. No entanto, está por baixo.
O
risco de que despreze o proletário tradicional é grande, assim como o de
demonizar o imigrante, que "parasita os subsídios" (que estão no mesmo
lugar que ele, mas dos quais quer distância). Daí pode surgir um
problema que conviria resolver: os oprimidos históricos desprezam o
precariado (sendo eles próprios precários); e este despreza a camada
inferior da classe operária. Trata-se de encontrar a janela de
oportunidade para unir essas forças.
O precariado tem um “status truncado”. O status é o espaço de
reconhecimento vinculado ao trabalho assalariado. Enquanto um
trabalhador de baixo salário podia construir uma carreira profissional
(ainda que limitada), o precário tem essa possibilidade negada. O
precário carece de segurança para conseguir emprego, manter-se no
emprego, fazer carreira, ter garantias e segurança no posto de trabalho,
reproduzir suas habilidades, manter uma renda e representar seus
interesses coletivamente. Carece da identidade baseada no trabalho, não
tem memória social nem sensação de pertencer a uma “comunidade
ocupacional baseada em práticas estáveis, códigos éticos e normas de
comportamento, reciprocidade e fraternidade”.
A solidariedade entre os precários é fragil. A sensação é de estar
sendo maltratado, e de enfado diante da diferença entre sua sorte e a
dos outros. O antigo estagiário tornou-se hoje um simples precário.
Portanto, há quatro novas características do precário. Aversão (certa
inveja ou ressentimento que leva ao desenraizamento ou excesso de
autoexploração). Anomia, essa passividade nascida do desespero.
Ansiedade, por se saber sempre à beira do abismo (basta um erro ou um
golpe da sorte para cair no lado escuro da vida). É a frustração de
saber que se tem muito pouco e, não bastasse isso, é muito fácil perder o
que se tem. Por fim, a alienação: frustrado profissionalmente, o
precário tem dificuldades profundas em desenvolver relações de
confiança, ao mesmo tempo em que escuta que deve ser positivo e sorrir.
O precariado está lançado no mundo, à mercê de forças – os mercados –
contra as quais não pode fazer nada, a não ser acrescentar
ressentimento. A política poderia ajudar, mas por força de não controlar
seu destino, de ter-se desenvolvido em formas de democracia
representativa, de estar sujeito a constantes mensagens que dizem não
haver alternativa, acabou desprezando a política, perdendo o único
instrumento que poderia realmente ajudar.
O livro deixa perguntas. Standing não critica o capitalismo, mas
apenas seus excessos neoliberais. Daí sua proposta de “mercantilização
total do trabalho” (dando como certo que quem contrata, necessita; e vai
remunerar segundo as regras teóricas do "mercado de trabalho") ou que
os países ricos convertam-se em “economias rentistas" e invistam nos
países emergentes. É muita suposição. Como quando ele fala de um
precariado bom – ao qual atribui todas as qualidades de uma cidadania
responsável – e um mau – que cairia nas garras da direita populista.
A classe operária podia invadir o paraíso, porque o grosso da
humanidade era trabalhadora e o sistema de produção capitalista é um
modo de produção sustentado pelo trabalho alheio. Pensar o precariado
revolucionariamente, sem mudar o capitalismo, é um exagero. Um
precariado que, por enquanto, só quer melhorar suas condições de vida. A
consciência resultará de suas lutas.
Tradução: Inês CastilhoFonte:Cartacapital
Nenhum comentário:
Postar um comentário