Uma das melhores histórias de amor de 2013. |
É difícil falar de “Azul é a Cor Mais Quente” (“La Vie d’Adèle –
Chapitres 1 & 2”, “Blue Is the Warmest Colour”), em especial porque,
à primeira vista, ele parece muito mais simples do que é. Não só isso, é
infelizmente o tipo de produção que é vista por muitos com maus olhos,
por tratar principalmente do relacionamento romântico entre duas
mulheres, com direito a cenas de sexo sem os pudores tradicionais de
Hollywood.
O que temos aqui é uma história de descobrimento de sexualidade, de
amadurecimento e, principalmente, de amor. O conto tem uma profundidade
incomum e temas e sentimentos que todos nós conseguimos nos relacionar.
Seja qual for o gênero ou orientação sexual, há algo para todos.
Este drama romântico tem direção de Abdellatif Kechiche e é baseado
na graphic novel de Julie Maroh de mesmo nome (edição nacional pela Ed.
Martins Fontes).
Aqui, acompanhamos a jovem Adèle (Adèle Exarchopoulos) no fim de sua
adolescência e início da vida adulta. Frustrada e confusa, a garota
descobre que tem atração por mulheres ao conhecer Emma (Léa Seydoux),
uma estudante de Belas Artes que chama atenção pelos seus cabelos
curtos, coloridos de azul. Iniciando um relacionamento com Emma, Adèle
passa a conhecer mais sobre si mesma e amadurecer, mas seja pela
aceitação de sua homossexualidade ou pelos diversos conflitos que
encontra no relacionamento, ela tem muito a aprender.
Preciso deixar uma coisa clara: “Azul é a Cor Mais Quente” não é um
filme sobre ativismo LGBT, não é um filme sobre sexo e não é apenas
outra história de amor dentre tantas. A produção tem um cuidado imenso
em se mostrar algo real, honesto e envolvente, apostando em grandes
atuações e um acabamento meticuloso, sem artifícios baratos. Foi esse
cuidado, em diversos aspectos, que já garantiu a “Azul” a Palma de Ouro
em Cannes.
O ritmo é lento, tanto em evolução de história quanto em montagem de
cenas. Temos tomadas cheias de detalhes, com progressões previsíveis, e
mesmo que isso talvez canse parte do público (afinal, o longa tem
aproximadamente três horas!), é um dos principais aspectos que permite
sua profundidade e realismo. O tempo que nós passamos com o casal – mas
principalmente Adèle – nos permite conhecê-las muito bem. Não
necessariamente nos afeiçoamos, porque esse não é o ponto da obra. O
ponto é que esse tempo permite que elas pareçam mais com pessoas que
conheceríamos na vida real.
Parte da razão para as três horas de filme é o fato que a história se
estende por alguns anos. Como o ponto é trabalhar amadurecimento e
aprendizado, começamos aos dezessete anos de Adèle e quando tudo
termina, ela está dentro de seus vinte e poucos anos. Juntamente do
amadurecimento dos personagens, aqui se destaca também um bom trabalho
de maquiagem e guarda-roupas, envelhecendo e mudando sutilmente o
elenco.
Adèle funciona muito bem como uma protagonista. Por diversas
sequências acompanhamos sua vida quase em uma base de dia-a-dia,
permitindo que notemos pequenos hábitos e manias que ainda que não sejam
referenciados, estão lá. Como o filme tem uma predileção por closes,
esses detalhes ficam facilmente em evidência. Apesar da personagem ser
consideravelmente blasé (ou “misteriosa”, nas palavras de uma secundária
do longa), mesmo esses momentos com pouca emoção tem um cuidado de
atuação claro por Exarchopoulos, que também sabe mostrar dramatismo
quando necessário. Emma não fica para trás, de modo que a produção
constrói o interesse de Adèle aliado ao interesse do público. Sua
personalidade forte é convincente e a atriz tem maestria em conduzir
cenas inteiras.
Voltando à trama, fica claro durante todo o tempo que o objetivo do
diretor não foi necessariamente o ativismo, ou ao menos não no sentido
tradicional. Em certos pontos da história, existem, sim, alguns dramas
que o público LGBT irá se identificar, como a homofobia dos colegas de
escola de Adèle, ou a resistência que tem em “sair do armário” para seus
pais, e algumas cenas deixam claro que o casal se engaja em passeatas e
eventos a favor de direitos LGBT. Mas o principal da produção é
realmente colocar o relacionamento como qualquer outro: exatamente por
evitar focar demais nesses problemas, temos mais espaço para explorar a
relação das duas. Tudo aqui tenta – e consegue – nos mostrar que não há
tabu no amor de Adèle e Emma.
Um dos temas recorrentes aqui é o sexo – o que era de se esperar, de
um filme que foca no realismo de um relacionamento -, com a censura 18
anos plenamente justificável por cenas de nudez completa. A duração das
cenas de sexo podem desagradar alguns (as próprias atrizes opinaram que
as sequências teriam ficado longas demais), mas são sem dúvida
excelentes em sua execução e intensidade física e, principalmente,
emocional.
Outro aspecto claro e extremamente maduro do filme é trabalhar bem
cada “mundo” individual das garotas. A vida de cada uma tem outras
pessoas, amigos e família e esses mundos não giram ao redor delas.
Adèle, em todo o crescimento que faz durante o filme, muitas vezes se
depara com novas pessoas e situações, mas há um cuidado em criar uma
continuidade independente para elas. As coisas não acontecem em função
das protagonistas, elas apenas acontecem.
A história do relacionamento, no fim das contas, fala de diferenças
pessoais às vezes irreconciliáveis. São as diferenças de temperamento,
personalidade, gostos e maneiras de ver a vida entre as duas que ditam
os principais conflitos da segunda metade do filme. Como muitas vezes
acontece na vida real, as divergências acontecem tanto em um nível
prático como emocional, e nem tudo precisa ser dito claramente para
sabermos que está lá.
O Azul do título é quase um personagem, onipresente em cena, tanto de
modo discreto ou descarado. É claro, o tom é uma referência ao
sentimento de Adèle por Emma, que tem cabelos coloridos, mas logo
notamos que Adèle é cercada pelo Azul de Emma onde quer que esteja –
seja mesmo nos cabelos da moça na primeira metade do filme ou nos
cenários, roupas e objetos.
Preste atenção – praticamente não existem cenas sem ao menos um
detalhe em azul. Há um nível de detalhamento e cuidado que garante que
por vezes o Azul converse com as cenas e o público, mas que na maior
parte das vezes ele surja de modo tão orgânico que não o notamos a não
ser que estejamos procurando.
Um exemplo interessante fica em uma das primeiras cenas de Adèle e
Emma (de cabelos azuis) em um bar: quando seus olhares se cruzam, como
uma resposta quase inconsciente Adèle tira nervosamente a jaqueta que
usava até então, revelando por baixo uma camisa de um azul vivo,
marcante. É um dos primeiros momentos que vemos o Azul lentamente
representando algo mais que apenas uma cor.
O enredo em si diverge da história da obra original, alterando o nome
da protagonista e optando por não explorar temáticas mais trágicas, de
certo modo ganhando chances de explorar ainda mais realismo que marca os
relacionamentos mostrados em cena. Na França, a produção tem o
subtítulo “Capítulo 1 & 2”, mas durante a história não vemos nenhuma
marcação que indique quando começa um ou outro capítulo. Ainda assim,
os temas que são explorados conforme a história avança os deixam
implícitos.
Se estiver se perguntando se haverão outros capítulos, tenha em mente
que o final busca fechar alguns pontos do enredo, mas deixa portas
abertas. Em termos de história e dos diversos subtemas iniciados, há
muito que poderia ser explorado, mas depois de diversas notícias de
brigas entre as atrizes e o diretor, incluindo afirmações de que nunca
voltariam a trabalhar com ele, soa improvável, no momento, que tenhamos
alguma continuação.
Fonte:POP
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